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sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

O mundo das coisas


Análise da adaptação do livro O cheiro do ralo de Lourenço Mutarelli (Ed. Devir, 2. ed., 2007) para o filme homônimo de Heitor Dhalia (Brasil, 2007). Roteiristas: Marçal Aquino e Heitor Dhalia.


Há diversas características no enredo de O cheiro do ralo que fazem dele um drama marcadamente contemporâneo, que permitem uma reflexão acurada sobre as condições atuais de construção da subjetividade, em que as relações humanas, inclusive afetivas, são mercantilizadas, a televisão se imiscui na mente das pessoas, controlando muitas de suas pulsões, em que a violência aparece como válvula de escape para a solidão e o tédio. Com exceção da onipresença da televisão e do discurso publicitário, que é pouco explorada no filme, todos os outros aspectos constituem o cerne da história (tanto no livro, quanto no filme) de um pequeno empresário paulistano que, consciente de que nunca gostou de ninguém, deseja possuir a bunda, isto é, a bunda da garçonete da lanchonete que freqüenta. Não se trata meramente de um impulso sexual, mas de possuí-la como um objeto ou de consumi-la como uma imagem ou uma mercadoria qualquer, de modo que só poderia atingir seu intento se pudesse pagar para ver a bunda, reduzindo desse modo a garçonete a uma coisa entre as outras coisas usadas, aquelas que compra em sua loja para revender com lucro.
A complicação da história está no fato de que a bunda não é acanhada, coitadinha, dificultando o objetivo do protagonista. Dificultando apenas, porque no final das contas a moça fica desempregada e acaba por aceitar o dinheiro para mostrar-se. É assim que o fetichismo, a coisificação das relações humanas é levada ao paroxismo, pois tão logo pode possuir a bunda, o protagonista já não se interessa mais por ela, porque ela vale enquanto busca, não como objeto; enquanto desejo que tão logo é saciado pela posse do outro, deixa apenas o vazio.
O livro de Mutarelli conta essa história através do discurso indireto livre, em primeira pessoa, não apenas para registrar os monólogos do protagonista e os diálogos entre personagens, mas também e indistintamente os pensamentos, as lembranças, as imagens e falas que constrói ou que reproduz a partir da programação da TV, bem como a descrição das ações. Deixa alguns indícios de que seus sonhos e delírios se misturam à realidade, de que estava dormindo quando alguns fatos se sucederam ou que estava sob efeito de antidepressivo. Tudo isso aparece num fluxo de linguagem com um ritmo alucinante. Os capítulos têm tamanhos bastante distintos e estão subdivididos por traços, inúmeros traços que funcionam como cortes desse fluxo, que remetem o leitor de um lugar a outro, de uma ação a outra, com elipses temporais; servem também como cortes no fluxo dos pensamentos. No entanto, esses cortes não dependem dos traços, podem dar-se de uma frase a outra, em que diferentes idéias, descrições de ações, slogans, entre outras coisas, vão alternando-se no transcorrer da narrativa escrita.
O filme de Dhalia, no geral, desacelera o livro. Isso é curioso porque normalmente é o contrário o que ocorre, ou seja, são os filmes que dinamizam os romances. Esse processo de dinamização pode acorrer de diversas formas, por exemplo, através de elipses temporais ou da eliminação de acontecimentos secundários ou de personagens, amplificando, por outro lado, passagens que possam dar ensejo à criatividade do autor em exprimir-se através de blocos de imagens. A duração da narrativa, embora imprecisa em ambos, não sofre alterações, o que se altera é seu ritmo, mais intenso no livro. E mesmo quando o filme suprime, adiciona ou dá relevo a algum personagem não há indicação que se busque a dinamização da narrativa. Vejamos dois exemplos.
Primeiro, toda a passagem do livro em que o protagonista se apaixona pela mulher casada é suprimida no filme. Trata-se de um acontecimento importante no livro, que explora outras possibilidades da narrativa e do caráter do personagem e que se desenvolve no longuíssimo quinto capítulo do livro, o mais longo de todos. O protagonista se encanta pela mulher casada, que aparece como cliente, para vender-lhe um relógio. Ela aparentemente também se encanta por ele. Ela precisa de dinheiro, ele a ajuda, reconfortando-se com sua presença, embora fique em dúvida se está apaixonado ou se é efeito do novo remédio (tudo indica que é um antidepressivo) que está tomando. Apesar disso, o mundo dele ganha um novo encantamento, ele liberta-se por um tempo do cheiro do ralo e da presença obsedante do olho de seu pai. Vivem um jogo em que o sexo e o dinheiro que ele lhe dá para ajudá-la se complementam. No fim das contas, a desconfiança de que ela apenas está se aproveitando dele se sobrepõe a sua afeição e ele acaba por obrigá-la a cheirar o ralo, expulsando-a sem saber ao certo as intenções dela. Toda essa trama é retirada do filme, embora estivesse presente no roteiro. Aparece apenas uma cena descontextualizada em que uma mulher tira a roupa e faz sexo oral com o protagonista que lhe dá todo o dinheiro que tem nas gavetas. O que poderia ter levado a essa supressão não está ao nosso alcance saber ao certo. Porém, podemos afirmar que não há motivos para acreditar que essa passagem traria dificuldades para a dinâmica da narrativa, já marcada pela sucessão de um grande número de personagens que chegam à loja. Talvez uma simplificação da personalidade do protagonista, tornando-a mais linear, descomplicando-a. O filme poderia tornar-se mais interessante com a presença dessa trama.
O segundo exemplo é o destaque que o segurança ganha no filme, que no livro e no roteiro aparecia muito pouco. O segurança é interpretado, curiosamente, por Lourenço Mutarelli, autor do livro. Ele interage com o protagonista e com os clientes, mas o que sua presença indica sem sombra de dúvida é a construção de um caráter mais cômico ao filme, indicado já em seu figurino exagerado, seu jeito de paspalho, seu modo de falar ao mesmo tempo presunçoso e vulgar.
O filme possui um ritmo mais leve, pausado, que ameniza a personalidade atormentada do protagonista, que até ganha um nome, que não tinha no livro: Lourenço. Além disso, existe muito humor no filme, um humor ácido às vezes, mas bem dosado. A presença de Selton Mello como Lourenço, ator conhecido por muitos trabalhos humorísticos na TV, não compromete o tom geral do filme, salvo em algumas passagens em que seu estilo muito próprio de atuação transparece, falando mais alto do que o personagem que interpreta, como na cena em que se recusa a comprar dinheiro antigo de um cliente.
Esses elementos apontados acima (simplificação, humor, leveza, a presença de uma estrela da TV) talvez possam ser interpretados como uma preocupação em alavancar uma carreira comercial para o filme, o que não costuma acontecer com o atual cinema brasileiro financiado pelas leis de incentivo, cuja captação prévia de recursos desocupa a produção da necessidade da difusão do filme, até mesmo muitas vezes do desejo que esse filme seja visto pelo grande público, o que necessitaria de uma briga política para ampliar o espaço das produções nacionais no circuito de distribuição dominado pelos interesses da indústria do cinema estadunidense.
Contrabalançando isso tudo, o filme não faz concessões ao que é o cerne da história. A mercantilização das relações humanas fica evidenciada pelas diversas cenas em que os clientes afluem à loja para conseguir dinheiro com coisas usadas, muitas delas de valor inestimável outras sem valor algum, como o prato que a viciada lhe oferece. Essa situação dá poder a Lourenço sobre todas essas pessoas, ele determina valores de forma aleatória e deseja e acaba por fazer o mesmo com a bunda da moça da lanchonete. No fim das contas, só resta-lhe o vazio da ausência do desejo, o cansaço de uma vida desprovida de afeto. É isso o que o ralo representa na história. É ao ralo que Lorenço se dirige quando se sente vazio, recusa-se a consertá-lo de fato, inclina-se sobre ele para aspirar seu cheiro, rasteja moribundo em sua direção. Talvez a cena mais potente do filme seja uma que até pode passar despercebida, o travelling pela loja fechada, à noite, que descortina a luz vinda do ralo, diabólica. É no ralo que Lourenço busca seu reflexo, mas o ralo é o cu do mundo, o inferno, a escuridão, a ausência do pai. Quando ele olha para o ralo, vê apenas a escuridão, mas a escuridão responde ao seu olhar, ela o vê com o olho do inferno, isto é, com o olho do pai que ele nunca conheceu mas que tenta construir com um olho de vidro e uma perna de pau, como na história infantil. Lourenço se vê diante de sua incapacidade de tornar-se adulto, de amar, de respeitar aos outros e a si mesmo. De tanto acumular coisas, de tratar as pessoas como coisas, Lourenço reifica sua própria vida, alimenta seu espírito com seu próprio excremento, o cheiro do ralo.

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