Artigo publicado na Revista Trágica: Estudos de Filosofia da Imanência
Rio de Janeiro, Volume 8, n.º 3, 3.º quadrimestre de 2015.
Do pensamento do fora: heterogêneses
Por Sandro Kobol Fornazari
Trecho inicial
“Quanto
menos as pessoas levarem a sério o pensamento, tanto mais pensarão conforme o
que quer um Estado”. Essa
afirmação incisiva de Deleuze e de Guattari põe em relevo um das principais
problemas que os autores de Mil platôs
constroem quando se trata de discutir a relação entre o Estado, enquanto
centralização máxima do poder, e o pensamento em sua dupla possibilidade: ou
ele é de acordo com o modelo fixado pelo aparelho de Estado ou ele é sem modelo
e sem fixidez, antes ele desfaz os modelos e as formas fixas, ele é fugidio,
insinuante, desconcertante. Assim, por um lado, há um pensamento conformista,
não no sentido de que haja conteúdos do pensamento (crenças e ideias) que sirvam
como um véu para ocultar a realidade, fazendo com que se aja e se pense de
maneira a legitimar um dado poder, mas no sentido de que a própria forma do
pensamento é constituída de acordo com a forma desse aparelho de poder. Em
outras palavras, não se trata de ideologia, mas do modo como os princípios que
operam na fixação da soberania do Estado dilatam-se
no pensamento. É isso o que os filósofos nomeiam como forma-Estado do
pensamento. Ela possui duas cabeças: um “imperium
do pensar verdadeiro” como fundação e uma “república dos espíritos livres”
como fundamento. Grosso modo, a fundação
diz respeito ao mito que opera o liame ou a apreensão daqueles que se submetem
à soberania e o fundamento diz respeito ao logos
que organiza juridicamente um pacto ou um contrato. No entanto, por outro lado,
como dizíamos, há um pensamento que escapa a esse espraiamento das engrenagens
do poder, que é destruidor dos modelos e das formas, um pensamento enquanto
máquina de guerra que se subtrai à soberania, que é antes uma tribo nômade,
isto é, o contrário do aparelho de Estado. Esse contrapensamento, Deleuze e
Guattari, no “Tratado de nomadologia” vão chamar de “pensamento do fora”. Eles
dizem que fazer do pensamento uma máquina de guerra significa colocá-lo numa
relação imediata com o fora, com as forças do fora. Nesse ponto da elaboração, os autores referem-se a um ensaio de Foucault que se
chama exatamente “O pensamento do fora” e que tem como mote principal um
comentário sobre a obra de Blanchot.
O
que se propõe neste artigo é analisar algumas das articulações conceituais em
torno do pensamento do fora em Deleuze, em contraponto à forma-Estado, que
implica a imagem dogmática do pensamento, à luz das formulações foucaultianas
sobre o pensamento do fora. Para atingir tal intento, buscar-se-á destacar a
presença do texto literário de Mallarmé nas indagações de Foucault, mediada,
por sua vez, pelos comentários de Blanchot sobre o poeta. Enfim, não se trata
de procurar estabelecer filiações e influências, mas de apresentar um campo de
problematização que será apropriado criativamente por Deleuze e por Guattari.