Visitantes

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ininterrupto

Para Daniel Fontana

Não tem nada que presta nesse rádio, e o cd quebrado já faz anos, por que eu não compro outro rádio, porque aí não ía ficar ouvindo essa porra de cbn esporte clube, esse Juca Kfouri que se acha, arg, outro daqueles trocadilhos com o nome do jogador. Pelo menos nesse horário não pego trânsito, é só tocar adiante, tentar não pensar em nada… malditos, desgraçados, por que não me deixam trabalhar em paz, não tenho culpa se são incompetentes: invejosos, porra, só quero trabalhar, ir embora de lá e esquecer. Daqui a onze meses, uma semana e dois dias tem outras férias, dessa vez vou viajar, não vou ficar só nos planos… Preciso comprar coisas, fazer alguma coisa com aquele dinheiro no banco, o dinheiro só fica lá, empoeirando, todo mês mais um pouco, pra quê? Devia dar pra alguém, pra quem? Caralho, será que só eu respeito a velocidade, todo mundo com pressa, voando, será que apostam corridas imaginárias, não sei por que não funcionam em mim as estratégias de marketing, não sinto necessidade de consumir, o que seria da economia se todos fossem como eu, quantos desejos já tentaram implementar em mim, em vão, a coisa que mais gosto de fazer não faço porque tenho medo, andar de bicicleta, não dá, os motoristas nem vêem as bicicletas, e se precisar jogar em cima jogam, e eu me sinto tão livre de bicicleta que me acho indestrutível. É, bicicleta não dá. Filho da puta, vai fechar a puta que pariu, puta, puta, por que tanta puta quando se vai xingar? Merda, esqueci de lavar a roupa, esqueci também de comprar pão, amanhã vou trabalhar com fome de novo, que dia é hoje, terça, não tem nada na tv, como ia ser se eu chegasse em casa e não ligasse a tv, silêncio, silêncio, que nada, ia ter minha cabeça falando como agora, sem dar trégua, me lembrando do que não interessa, me fazendo esquecer o que importa, eu devia arrumar um gato, não eles são silenciosos também, mas às vezes pode ser um gato carinhoso, não, não, devia ter um filho, mas aí eu ía precisar casar de novo, não consigo mais dividir minha vida com ninguém, ninguém ia querer também, essa história de que todo mundo tem alguém destinado, que balela, há três anos ninguém se interessa por mim, fazem muito bem, porque eu também não me interesso por ninguém, que porra, queria parar de pensar um pouco, vou parar pra comprar pão, ah, não vou não, o pessoal dessa padaria é muito mal educado, já chega no serviço, cara feia, e eu que tento ser simpático com todo mundo, não tenho culpa de que faço as coisas bem feitas, inveja é foda. Oitenta por hora, se eu puxasse o volante pra direita agora, não ia precisar trabalhar de barriga vazia amanhã, o silêncio seria outro, sem consciência, puro vazio, de uma vez por todas, eu devia ter comprado outro rádio com cd, mp3, devia, não quero ir pra casa, encontrar tudo do jeito que deixei de manhã, ter de ligar a tv… Noventa por hora, chega, é hora de meus músculos…
*************************************************************************************
*************************************************************************************
Puta merda, que estronto, faíscas, o carro deu várias voltas e eu estou ainda aqui, preso, meu pescoço, estou de ponta cabeça, merda, eu não vou apagar, não vou sentir dor? Cadê a porra do silêncio, não agüento mais essa cabeça, essa voz que eu sou dentro de mim, que diz eu, que insiste...

A morte de Immanuel Kant (vídeo-poema)

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Diálogo

E agora, o que você vai fazer?
Como assim?
Com toda essa grana?
Vou continuar fazendo a mesma coisa, compor minhas músicas, fazer shows…
Não é isso, quer dizer, além disso, não vai viajar o mundo, Miami, Hollywood, Nova Iorque?
Não, não, prefiro passar as férias lá em Minas com minha família, ah e queria conhecer a Itália, mas só depois do próximo CD que vai sair em DVD, show ao vivo, tal.
Mas você vai querer comprar um carrão, não vai, desses enormes, meio jipe, 4X4, importadão!
‘Cê tá brincando, né?
Há, mas um BMW dava pra comprar, não dava?
Meu, dava pra comprar uns vinte BMWs, mas por que eu ia precisar disso, pra viver com medo de assalto, de seqüestro?
Que é isso! Quando a gente era criança você vivia sonhando com esses carrões, você até tinha uma Ferrari de ferro…
Tinha, mas a gente era criança, esqueceu? Depois, não lembra do João Paulo?
João Paulo, o papa?
Que papa, o parceiro do Daniel, ele tinha um carrão desses, não lembro qual, correu tanto que acabou colado no asfalto, lá em Minas.
Colado no asfalto, hahá.
Você ainda ri, meu, o que que está acontecendo contigo?
Um apartamento novo, uns móveis bem combinando, uma casa na praia, é isso que você está precisando, não é não?
Na verdade não, não preciso de nada disso, meus sogros moram em Peruíbe, você esqueceu?
Peruíbe, hahá, não sabe mesmo o que é curtir a vida, meu negócio é Ilhabela, Barra…
Não sei curtir a vida, mas é você que vive reclamando de seu emprego, de suas namoradas, de seu ap…

Então que que ‘cê vai fazer com esse dinheiro todo, caralho?
Sei lá, vou dar uma ajuda pra minha irmã e pra minha mãe, mas eu tenho de pensar mesmo é na minha filha.
Claro, sua filha.
E vou fazer o seguinte, também, vou te dar um presente…
Qu’é isso, não precisa não.
Vou te dar uma grana, daí você compra um carro ou um apartamento, o que quiser.
Er.
Em nome de nossa amizade antiga, eu sempre pude contar contigo, quando meu pai morreu…
Qu’é isso…
Tá certo?
Mas uma grana quanto?
Sei lá, cinqüenta mil.
Cinqüenta mil?
Cinqüenta mil.
Por que você não enfia esses cinqüenta mil no cu?
Quê?
Vai se foder, meu, você ganhou milhões com esse lixo de música.
Hã?
Só por causa dessa cara bonitinha, você até esquece que fui eu que te ensinei a tocar violão, não lembra não?
Não foi bem assim…
Não foi bem assim, ‘cê tá maluco?
Então você acha minha música um lixo, você é muito falso, que merda, você já terminou de comer? Porque acho que já está na hora de você ir embora.
Ir embora o caralho, só vou embora quando você arrumar quinhentos mil em dinheiro.
Quê?
Em dólar.
‘Cê‘tá louco, de onde tirou essa idéia?
Tirei do fato de que sua filha está com uns amigos meus, na mira da faca, entendeu?
Minha filha, mas ela saiu pra ir…
Pra ir no shopping, pegamos ela, acabei de receber a confirmação, agora vamos negociar.
Cara, nossa amizade…
Enrola e enfia junto dos cinqüenta mil.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Presságio funesto

(Inspirado no conto "A cartomante", de Machado de Assis)

Era o Rio de Janeiro imperial, 1869. Dona Maria Anunciadora de Almeida estava triste e um tanto desgostosa com a vida nos últimos meses. Ela que se acostumara com a companhia do único filho desde a morte do marido, alguns anos atrás, agora passava seus fins de tarde e noites sozinha, desfiando o rosário de sua viuvês. Camilo contava então com vinte e seis anos, mas saía pouco de casa, não sendo afeito à boêmia, gostava mais dos passeios pela cidade nos finais de semana, de tomar um café com torta nas confeitarias do Centro e de vasculhar os livreiros em busca das últimas novidades da literatura romântica que chegavam da Europa. Nos fins de tarde, quando ele voltava de seus encargos de funcionário público, tomavam, mãe e filho, um café da tarde acompanhado de biscoitos ainda mornos que ela mesma preparava enquanto cantarolava em sua cozinha. Depois jogavam damas e, uma ou duas vezes por mês, Camilo a levava ao teatro.
Depois do retorno de Vilela, amigo de infância de seu filho, o forno de D. Maria Anunciadora já não se acendia com freqüência. Após o almoço, Camilo a avisava que não viria para o café, pois Vilela e a esposa o aguardavam para isto ou aquilo, passeios, jantares, teatro. Vilela casou-se em Campos dos Goytacazes, onde foi exercer a magistratura, que abandonara para ser advogado na capital. D. Maria reconheceu a graça e a vivacidade da esposa, de nome Rita, quando esta acompanhou o marido em uma visita à casa onde ele passara tantas tardes de sua infância brincando e comendo biscoitos. Desconfiou, no entanto, de alguns gestos pouco contidos da mulher, diria-se até vulgares, e da completa ausência de recato de suas risadas.
Quanto mais tempo sem a companhia de seu filho, mais D. Maria começou a estranhar que ele passasse tantas horas junto do casal de amigos. Pensava que devia estar interferindo na intimidade deles. No entanto, sentia também um pouco de felicidade pelo filho, que tinha tão poucos amigos, talvez fosse ela que devesse sair mais vezes de casa, não apenas para ir à missa, como era habitual, mas para visitar a irmã em Paquetá ou a tia em Cosme Velho.
Mas, naquele dia, especialmente, um sentimento ruim a afligia. Isso porque, um dia antes, uma de suas mucamas achara, no quintal da casa, um sapo com a boca costurada. Como era bastante supersticiosa, viu naquele batráquio emudecido um sinal de mau agouro, de que algo que era mantido em segredo traria uma desgraça a mais para aquela família. Que segredo poderia ser aquele, Camilo agora teria dado de esconder coisas da sua mãezinha? Só podia ser algo relacionado a Vilela, cujo retorno à cidade trouxe tantas preocupações novas para ela. Pensando bem, esse retorno fora um tanto suspeito, já que seu trabalho com a magistratura havia sido tão bem sucedido. Que segredos trazia aquele casal consigo? E Vilela que nunca fora muito vivaz, por que será que se fazia cada vez mais sisudo? Com sua cabeça a não lhe dar descanso desde o instante que acordara, remoendo suspeitas e antecipando desgraças imaginárias, D. Maria não viu outro recurso senão ir consultar a cartomante.
Seguiu o caminho da rua da Guarda Velha, onde ficava a casa da prestigiosa vidente. Fazia anos, desde as vésperas da morte de seu marido, que ela não procurara mais a mulher italiana, cujos olhos, de tão penetrantes, eram como se devassassem o próprio Destino. Da última vez, dali saiu sem esperanças na recuperação do marido, que morreu três dias depois sentindo dores terríveis devidas a uma úlcera. Estava muito agitada e nervosa naquela tarde, esperava que a cartomante lhe tranqüilizasse em relação ao presságio funesto que apareceu saltando em seu quintal, que asseverasse que seu único filho estivesse a salvo das maleficidades do mundo e que logo voltaria aos antigos hábitos dos biscoitos caseiros e dos jogos de dama.
A cartomante abriu-lhe a porta de sua depauperada casa na rua da Guarda Velha, que antes aumentava do que destruía o prestígio, e conduziu-lhe escada acima para o sótão atravancado de velharias em que lia a sorte. D. Maria Anunciadora foi sendo tomada de angústia. A italiana, sentada contra a luz da única janela, baralhou as cartas penetrando-lhe com os afamados olhos agudos.
"A senhora precisa ser forte para enfrentar bem as coisas que virão." Disse-lhe enquanto descia as primeiras cartas sobre a mesa coberta de um pobre pano de feltro vermelho. "Minha Nossa Senhora, quer dizer que vai mesmo acontecer alguma desgraça! As cartas dizem que alguém voltou de viagem… O Vilela, amigo de meu filho, que é que tem? Vejo-o num acesso de fúria, seu filho tem de afastar-se dele." D. Maria mal conseguia respirar. A cartomante prosseguiu: "Vejo duas mulheres na vida de seu filho, uma é a senhora, enquanto ele estiver do seu lado, nada de mau pode-lhe acontecer, a outra… será sua perdição. Santa Maria Mãe de Deus, o que devo fazer?" A cartomante calou-se por uns instantes, observando as cartas sobre a mesa, depois disse, sem esconder o desconforto diante dos infortúnios que as cartas previam para aquela mãe aflita: "Já disse, enquanto a senhora estiver por perto, nada de mal vai acontecer a seu filho, está tudo aqui, as cartas não mentem."
Aturdida, a cartomante encerrou a consulta, recolheu as cartas e pediu que D. Maria se retirasse, acompanhou-a até a porta, descendo as escadas. Não quis aceitar o dinheiro dela, os dois mil-réis que costumava cobrar. Fechou rapidamente a porta.
D. Maria Anunciadora caminhou sem rumo, enquanto a cidade vagarosamente escurecia. Perdida num turbilhão de sentimentos e idéias, ela tentava entender o que a cartomante lhe dissera. Vilela enfurecido, uma mulher fazendo perder-se em vicissitudes seu filho, seria Rita, só podia ser, logo desconfiara dela. Ah, quanto horror em seus pensamentos. Imaginava Vilela transtornado pelo ciúme, escorrendo o sangue de sua esposa, depois indo atrás de Camilo para terminar de lavar sua honra. Como poderia Camilo deixar-se seduzir por aquela mulher? Não, isso ainda não acontecera, se ela pudesse impedir a assídua freqüentação de Camilo à casa dos recém-chegados, ele estaria à salvo, mas como ela faria isso? Viu-se em frente da Igreja da Candelária, entrou, ajoelhou-se penitenciando-se por seus receios supersticiosos que a levaram à casa da italiana, mas justificando-os em nome de um bem maior que buscava para seu amado filho. Permaneceu ali por algum tempo, pedindo que Deus a iluminasse mais do que a cartomante fora capaz. Quando saiu da igreja, mais calma, porém perdida nos labirintos de sua alma angustiada, a noite já tomava conta de tudo. Seguiu em direção do Largo da Carioca, quando se aproximava, não viu, nem ouviu a charrete que se deslocava a trote largo, foi jogada longe pelo choque sofrido com o cavalo, desfalecida.
Sob os cuidados do médico da família, D. Maria Anunciadora de Almeida morreu nessa mesma noite, no leito em que também seu marido dera o último suspiro. Camilo segurava suas mãos e chorava copiosamente, sentindo os remorsos de ter estado tão afastado dela nos últimos tempos, desde o retorno de Vilela. Ao seu lado, Rita consolava o coração de Camilo, enxugando-lhe as lágrimas com seu lenço de seda, admirando-o pela franqueza de seus sentimentos pela mãe.
No quintal, as mucamas enfim encontraram o sapo com a boca costurada, presságio de toda a desgraça que se abatia sobre a casa. Mataram-o a pauladas.

20/8/2008
Link para "A cartomante":