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terça-feira, 15 de setembro de 2015

O desejo (ou Fragmentos de um niilismo amoroso)

“Estou saindo daqui agora, chego em São Paulo só de noite.”
Falava isso ao celular com o chefe, mas mentia porque já estava quase chegando a São Paulo. Eram quatro da tarde. Calor demais, duas horas e meia dentro do carro, sua camisa estava molhada de suor. Desconforto era uma palavra amena demais para esse tipo de situação. E agora esse congestionamento, obras, mais uma pista sendo construída, seriam quatro na rodovia que ligava Campinas à capital. Mais carros, mais dinheiro para os pedágios.
O chefe não poderia saber de sua mentira, eram sete anos na empresa, ele era de confiança. Mas teve de inventar, para poder ir direto encontrá-la, senão teria de passar na firma, relatório, e-mails, coisas pra resolver.
Fazia vinte anos que não via Janaína. O carro mal andava, muita poeira e barulho levantados pelos caminhões, tratores e escavadeiras. Isso até a semana anterior, quando se encontraram depois de tanto tempo:
“Recife, eu não sabia, quando me disseram que você tinha ido embora, disseram que foi para Vitória, ou Natal, não lembro, faz tanto tempo, nós tínhamos quanto, quinze anos?”
Menos, treze ou quatorze.”
“Eu era apaixonado por você.”
“Eu também.”
“Era nada, você tinha um namorado do colégio, devia me achar uma criança.”
“Até parece!”
Ela me fazia acreditar em tudo o que dizia, com seu sorriso fácil, seu falar descomplicado.

Conversaram por horas, caminhando pelo centro, passando por ruas que desconheciam e que os levariam a uma festa de rua, festa da colônia libanesa, com sua comida deliciosa. Depois foram à casa de uma amiga dela, um apartamento, onde ela iria passar a noite. A amiga, na verdade, era de seu marido, mas a viagem para São Paulo foi sozinha. A iniciativa do encontro tinha sido dela e isso era o mais perturbador para Fernando. Pensava: “O que ela queria a essa altura? Infeliz no casamento?”

“Você é feliz no casamento?”
“Hum...” Ela segurava o adorável filho de sua amiga no colo.
“Não tiveram filhos por quê?”
“Fernando, você e eu bem poderíamos fazer um, o que você acha?” Foi assim desconversando que ela aos poucos o enredou em seu mundo, fez com que ele se sentisse desafogado, bonito talvez, vivo. Ele respondeu:
“Sim, vamos fazer um filho, quando começamos?”
Ela soltou um riso livre e inspirado, olhou bem nos seus olhos e disse “não hoje”. A amiga de seu marido observava, é claro que não ia contar nada, mas mesmo assim a situação era desconfortável.

Algum tempo depois, senti que algo poderia se perder se eu não fosse embora. Era preciso marcar outro encontro, só nós dois. Antes que ela voltasse para Recife, antes quem sabe de ela resolver não mais voltar, ficar comigo para sempre, fazer um, dois, três filhos.

Na despedida, beijaram-se. Pela primeira vez, ela perdeu o controle sobre a situação. O beijo foi perto da parada de ônibus, intensamente suave, impensável.
Agora eles iam se ver de novo, se as obras permitissem que ele chegasse.

Fernando está vindo pra mim, é como se sentisse já seu cheiro transportado pela brisa morna, nesta cidade onde todos os cheiros se perdem, como em Recife todos os sons. Eu preciso olhar nos seus olhos mais uma vez, preciso saber se o que senti foi real, se minha vida deve passar pela metamorfose que toda paixão esboça, ou...

Caminhava pelo parque Villa-Lobos, ponto de encontro inesperado nessa tarde tórrida de final de verão. O suor escorria-lhe pela face e pelo pescoço, a respiração ofegava, a sombra não era abrigo suficiente. O celular tocou:
“Estou aqui, no estacionamento.”
“Espera, já desço até você.”
A espera, ainda, de infinitos instantes, coração batendo forte. Era essa a mulher com que passaria o resto de sua vida, pensou.
“Oi, nossa você está suado.”
“Você também, divinamente.” 
Eu ri, como ele era galanteador. Talvez devêssemos mesmo fazer um filho. 
“Onde vamos?”
“Eu tenho uma ideia.”
Enquanto ele dirigia rumo a sua ideia, conversavam descontraidamente, como se o mundo lhes pertencesse. Como se pertencessem um ao outro.
“Quando você está pensando em voltar pra Recife?”
“Não estou pensando.”
“Em que você está pensando?”
“Que você vai me levar ao motel e não sei se é uma boa ideia.”
“Mas é claro que é uma boa ideia.”
Na chegada ao quarto do motel, Janaína se sentia ausente. Até então, trair seu marido era apenas uma experiência vivida no terreno do sonho, impulsionada pelo desejo. Agora, seu desejo cobrava-lhe uma escolha. Ele foi logo tomar um banho, ela observou cuidadosamente seu corpo nu, sem que ele percebesse, espiando por uma fresta num jogo de espelhos improvável. O desejo a invadiu, levou-a para um lugar que já não era seu, onde seu corpo já não lhe pertencia. Quando ele voltou, enrolado na toalha, veio beijá-la, se achegando vagarosamente, calorosamente. Não, não havia escolha, ela não poderia entregar-se ao desejo. Era preciso resguardar o desejo para o olhar. Sim, um beijo, sentindo seu pinto roçar-lhe entre as pernas. Outro beijo, arrancando-lhe a toalha, observando sua bunda no espelho do teto. Ela se desvencilhou de seu abraço, de seu ímpeto, de seu anseio. Levantou-se, falou qualquer coisa a respeito de excitar-se com os sons que vinham do quarto ao lado, onde um casal fazia um sexo agitado. Disse que não, que não poderiam fazer amor. Nem quando? Quando nunca.
Ela sentou ali no canto do quarto, aparentando tranquilidade, controle. Ainda com sua roupa de caminhada, o suor colado na pele, seu cabelo liso, comprido, enquadrando seu rosto impecável, sua boca semiaberta. De canto de olho, viu quando ele se virou para resgatar a toalha e cobrir-se, viu seu membro tão grande, tão duro que teve receio que jamais se livraria daquela presença: o falo em sua pura forma, desejo, desejo. Gozou silenciosamente, sozinha, sentada ali no chão, meio de lado, resguardando-se da penetração, resguardando-se do outro, evitando que esse outro que a habitava viesse à tona.
Olhou novamente para Fernando que a observava. Perguntou-lhe se ele não gostaria de pedir algo para comer, talvez um suco. O ar condicionado começava a fazer efeito. Já não havia suor escorrendo naquele quarto.
Quando chegou o lanche com o suco, ele resolveu perguntar o que houve. Sem sucesso. Ela se saía com evasivas, apenas. Fernando perguntou:
“Você não vai tomar um banho?”
“Por quê?”
“Como assim por quê?”
“Talvez, depois.”
“Pensei que você gostasse de mim, que a gente se gostasse.”
“Eu preciso ir embora, a Clê está me esperando.”
“Vai me deixar assim? Não entendo...”
Assomando-se de seu desespero, ele disse baixinho, para si mesmo:
“Não é a primeira vez que isso me acontece. Tenho medo.”
“Medo?”
“Sim, medo de que seja impossível partilhar algo, de que só haja esperança na solidão.”

Não fui capaz de dizer mais nada pra ele. Não havia palavras para o que vivi naquele quarto. Palavras de menos, mas cada uma rasgava meu peito. Eu jamais largaria tudo para ficar com ele, minha vida não era lá. Era preciso ir pra casa. Nojo, eu tive nojo daquilo que ele me fez ver.

Ele levantou-se resignadamente lúcido. Fez com que fossem embora. Deixou-a num ponto de táxi.
“Adeus Janaína, seja feliz.” Assim seus olhos disseram. Dirigiu para casa. Era melhor ligar, pensou, avisar que estava chegando, sua esposa poderia estar preocupada.