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sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Sobrevida


Análise fotográfica do filme L’intrus da diretora Claire Denis (França, 2004).


O protagonista de L’intrus é Louis Trebor, com quem encontramos em três momentos distintos de sua vida. No primeiro, ele vive numa floresta montanhosa na zona de fronteira entre a França e a Suiça, na companhia de dois cães, espreitado por pessoas que desconhecemos, mas que parecem estar atrás de um acerto de contas com ele. Louis corta a garganta de um de seus perseguidores. Ele começa a sentir seu coração fraquejar. Com dinheiro que guarda num banco suiço, compra um novo coração para receber de transplante. Atormenta-se vislumbrando que o coração pode ser retirado de um corpo assassinado. No segundo momento, logo após o transplante, ele se encontra no oriente, onde faz negócios com sul-coreanos e afirma que o fez pensando no filho. Louis nunca teve contato com esse filho, já adulto, fruto de um relacionamento com uma taitiana. No terceiro momento, alguns anos depois do transplante, ele vai ao Taiti, em busca do filho, que o ignora. Lá, numa ilha remota, espera que seu filho apareça, enquanto aguarda sua morte em decorrência de efeitos do transplante.
Esse enredo, cuja síntese apresentamos, flerta decididamente com a inverosimilhança. Além disso, apresenta como protagonista um personagem que somente com muita boa vontade pode despertar a simpatia do espectador. Ele é um criminoso, que se esconde de seu passado, que não demonstra afeto pelo filho, nora e netos que vivem próximos à fronteira, abandona os cães na floresta, não hesita em usar seu dinheiro para comprar um novo coração.
Apesar disso, o filme de Claire Denis tem uma potência impressionante. Na seqüência do texto, tentaremos apresentar e discutir alguns aspectos fotográficos do filme que fazem com que a força expressiva de suas imagens comunique muito mais que uma narrativa qualquer e dote esse enredo esquisito de uma interessante simbologia.
A câmera de Denis e Agnés Godard (diretora de fotografia) não se quer transparente, não está registrando os fatos de uma história que se conta a si mesma. Ao contrário, existe sempre uma intencionalidade. O posicionamento da câmera, seus movimentos leves, mas não mecânicos, indicam a presença de um olhar que se reposiciona no quadro, que se aproxima ou se afasta, que explora os espaços e, principalmente, as pessoas. O mais freqüente é que a câmera nos transmita sensações. As sensações mais comuns provêm de uma aproximação das superfícies, sejam elas a pele, o cabelo, as roupas, os pêlos dos animais, sejam as paisagens naturais, que formam espécies de blocos: o mar, os pinheiros, as folhas, as palmeiras. Quando a imagem mostra as dificuldades de Louis em realizar esforços físicos, a empatia não é provocada pela identificação com o personagem, mas pela universalidade de seu corpo, a humanidade que a câmera explora de perto ao dar relevo à sua respiração ofegante, ao seu tatear na terra, que chega ao espectador através de sensações.
Entre os planos não existe um encadeamento mágico, que cria a ilusão de uma narrativa inquebrantável, de fatos que se sucedem por conta própria diante de nossa crença em sua verdade. Ao contrário, existem lacunas que deixam ao espectador um papel ativo de participação na história, de preenchimento subjetivo dessas lacunas. Personagens aparecem na história para tão logo desaparecerem, deixando-nos a imaginar os contornos de sua vida, como a namorada suiça de Louis. Além disso, há interpolações de cenas que não fazem parte dos fatos, parecem sonhos, talvez devaneios, medos, a exploração do inconsciente que não é necessariamente subjetivo, tampouco de um personagem ou do protagonista. É o caso das cenas que se seguem à negociação de compra do novo coração (ou até mesmo essa cena poderia estar incluída). Caçadores largam um corpo ensangüentado na neve, depois aparece o coração, também sobre a neve, num contraste impressionante de cores, até os próprios cães de Louis aparecerem para devorá-lo. Ainda, a cena de Louis sendo arrastado pela neve com as pernas amarradas a dois cavalos a todo galope, simbolizando a culpa e o castigo advindos da infame negociação, a que mesmo um assassino pode não sair incólume, mas pode ser que essa culpa seja nossa e não dele, pode ser que seja nosso desejo de punição para o ato desumano que presenciamos de contrabandear um órgão e que o filme exprime em imagens ali, ante nossos olhos incrédulos. Existe uma carga dramática nessas cenas, notadamente a dos cavalos, que se expressa pela velocidade com que a câmera se desloca, às vezes treme, tentando acompanhar os cavalos, que entram e saem do quadro, como se seu galope fosse de uma potência inapreensível para a câmera; há muitos cortes, planos detalhes, closes dos cavalos, até o enquadramento final da cena, com os dois cavaleiros subindo uma colina coberta de neve até o horizonte cortado pela luz do sol poente.
Vemos, então, que o filme se compõe de aberturas que fornecem ao espectador um campo de criação imagética e até mesmo de ilusão sensorial. Recriamos aspectos da história que o filme não conta, mas, mais que isso, refletimos sobre os elementos simbólicos e somos apanhados numa estrutura narrativa que nos provoca sensações e paixões múltiplas.
Uma das possibilidades de discutir o filme simbolicamente é a reflexão sobre o anseio humano de uma sobrevida, de viver para além do tempo em que seu próprio corpo foi programado, quando, no caso, o coração simplesmente vai deixando de funcionar. De que meios podemos lançar mão para atingir esse intento? Viver com um novo coração traz quais considerações a respeito da subjetividade do transplantado, que precisa inibir seu sistema imunológico para que seu corpo aceite esse órgão novo, causando com isso uma série de efeitos indesejáveis, de novas doenças oportunistas. O filme infelizmente não explora em profundidade as reflexões do livro de Jean Luc Nancy, homônimo do filme, apenas o utiliza como argumento. No filme, a necessidade do transplante impulsiona um novo caminho a ser seguido por Louis, no Pacífico Sul, onde ele desenrola sua decadência, um caminho para a morte. A câmera já se distancia dele, ele não inspira mais emoções, seu corpo já se mistura à paisagem, já não se singulariza. Apenas seu velho amigo parace compadecer-se dele, mobiliza sua comunidade para encontrar-lhe um filho. A busca por seu filho bastardo talvez não passe de um anseio por reencontrar sua juventude, uma busca vaidosa por uma vida, por um vigor que lhe escapa.
Uma última palavra não poderia faltar sobre a música original, que vai pontuando o filme, fazendo com que as imagens que ela acompanha transbordem da tela. Assim vão os cães correndo atrás do carro, deslizando pela superfície do mundo.

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