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quarta-feira, 31 de março de 2010

Uma manhã de domingo do Sr. Nietzsche

O Sr. Nietzsche, como de costume, acordou cedo nesse domingo. Estava hospedado num pequeno albergue próximo ao mar da baía de Rapallo, perto de Gênova. A chuva e o frio haviam dado uma trégua, o sol se arriscava num céu onde nuvens se dispersavam. Tomou uma xícara de chá bem forte preparando-se para sua caminhada na trilha rumo ao sul, que passava pelos pinheiros e de onde se avistava o mar. Caminhando pelas ruas da pequena cidade, viu as pessoas se dirigindo apressadas para a missa enquanto os sinos da igreja anunciam as oito horas. Observou atentamente os pais que arrastavam seus filhos pelas mãos, moças lindas que se vestiam de recato e de belos chapéus que lhes protegiam do sol e dos olhos dos rapazes, além de velhas senhoras que perscrutavam o mundo ao redor com olhos desconfiados e acusadores. Lembrou-se o quanto que em sua infância fora obrigado a frequentar a igreja, ainda mais depois da morte de seu pai, sempre na companhia da mãe, da irmã e da tia.
Quanto de desprezo há nessas mulheres velhas, tanto as moças como as outras, quanto de desprezo pelos instintos básicos da vida, arruinam seu corpo com o ressentimento, mortificam-se na ilusão de alcançar um além-mundo, pobres diabas, veem no próprio pressuposto da vida, na sexualidade, algo de impuro.
Ele dobrou em uma rua secundária, bem estreita, que subia em direção ao início da trilha que iria pegar. Havia ali uma livraria onde um velho senhor surdo mantinha empoeirados livros à espera de compradores que raramente apareciam. O Sr. Nietzsche resolveu entrar dessa vez, mais por curiosidade em relação ao livreiro que por causa dos livros, já que nos últimos meses lia bem pouco. Passou lentamente entre as estantes, procurando apenas livros em que farejasse um dia de sol, uma brisa morna vinda do sul, quem sabe o sabor de uvas frescas ou de uma xícara de chocolate espesso e sem gordura. Afastava-se de livros cujo odor remetesse a gabinetes de estudo, bibliotecas e salas de conferência. Notou uma prateleira com diversos livros de Kant e, logo abaixo, a Fenomenologia do Espírito. Um vento glacial penetrou em suas narinas. Afastou-se. Avançou rápido em direção a uma vistosa edição de O vermelho e o negro, que exalava um perfume de flores do campo. Quis comprá-lo, mas deu-se conta de que estava sem dinheiro. Talvez voltasse mais tarde. O livreiro ergueu os olhos para aquele senhor altivo, com um vasto bigode que lhe cobria a boca. Pegou uma pequena tábua e escreveu perguntando se era alemão. Nietzsche fez que não com a cabeça e apontou para "Stendhal" escrito no livro e o livreiro logo entendeu que era francês. Abriu um sorriso. Recebeu outro em retorno.
O Sr. Nietzsche saiu da loja decidido a voltar outra hora. Nesse dia, não poderia disperdiçar o sol que se firmava, mergulhar naquela paisagem magnífica. O caminho era em aclive e por ele se podia chegar até o alto do morro, de onde se avistava todo o promontório de Portofino. Assim fez, detendo-se de vez em quando para suas anotações. Carregava sempre consigo um pequeno caderno, sequer parava para escrever os pensamentos que lhe iam surgindo assim, ao ar livre, enquanto festejavam os músculos as alegrias da caminhada. Sentia-se muito bem disposto, depois de anos sofrendo com enxaquecas terríveis, dificuldades para enxergar, dores no estômago. Tivera de abandonar sua cátedra de Filologia Clássica na Universidade da Basileia, mas nesse momento sentia-se como se isso tivesse salvado sua vida, devolvido-lhe a liberdade para pensar por sua própria conta e risco.
O erudito não faz mais que revirar livros. O filólogo bem pode chegar a duzentos num dia! Acaba perdendo a capacidade de pensar por si, apenas responde a um estímulo – um pensamento lido – e se limita a aprovar ou desaprovar, criticar o que já foi pensado por outro. Se não revira, não pensa. Essa é a fórmula para a estupidez.
Quando voltou, viu que havia escrito uma dezena de páginas. Satisfeito com as pulsações de seu corpo, dirigiu-se ao pequeno restaurante onde, ali em Rapallo, fazia suas frugais refeições. Numa das mesas, algumas senhoras conversavam enquanto comiam sua massa acompanhada de um assado. O dono do restaurante era um simpatissíssimo napolitano com quem sempre trocava algumas poucas palavras.

– Ah, Sr. Nietzsche, que belo dia hoje, não, o frio deu uma trégua!
– Um dia excente, sem dúvida.
– Sr. Nietzsche, deixe-me apresentar minha prima Anita e sua cunhada Sra. Bergamasco, que chegaram ontem à cidade, este é o Sr. Nietzsche, professor na Suíça.
– Ex-professor, Sr. Pecolatto.
– Bom dia, Sr. Nietzsche.
– Bom dia, senhoras, sejam bem-vindas.
– Não quer sentar-se conosco, Sr. Nietzsche, estávamos comentando como foi tocante a missa de hoje, sim, e que belo coral.
– Muito agradecido pelo convite, mas tenho algumas anotações para conferir.
A cegueira ante o cristianismo conduz a humanidade à decadência. A moral cristã é uma antinatureza que recebe supremas honras, no entanto, não faz mais que salvar os fracos e impotentes do suicídio, da vergonha diante de si mesmos. Não perceberam ainda que as igrejas não passam de túmulos de um deus morto? Que essas missas não passam de ladainha de um velório horripilante?
O Sr. Nietzsche sentou-se em sua mesa habitual, enquanto aguardava sua refeição. Mas as parentes do Sr. Pecolatto arriscaram mais uma tentativa para angariar a atenção daquele distinto senhor. Despertando os olhares e ouvidos de vários outros clientes, uma pergunta da Sra. Bergamasco cruzou o espaço do restaurante:
– Mas diga, Sr. Nietzsche, o senhor foi à missa hoje?
Ele encarou atentamente a velha senhora, que exibia um sorriso ao mesmo tempo amigável e desafiador. Apoiou sua mão esquerda sobre o caderno aberto em cima da mesa, segurou o copo de água com a outra. Os sinos da igreja tocaram, nesse exato momento, as doze horas. Meio-dia é a hora sagrada para aqueles que não crêem em sombras. O Sr. Nietzsche ergueu seu copo em direção à Sra. Bergamasco, como a oferecer-lhe um brinde.
– Hoje não, senhora, hoje não.