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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O corpo-escritura de Nietzsche



“Ricardo Reis tem uma curiosidade para satisfazer, [e pergunta a Fernando Pessoa,] Quem estiver a olhar para nós, a quem é que vê, a si ou a mim, Vê-o a si, ou melhor, vê um vulto que não é você nem eu, Uma soma de nós ambos dividida por dois, Não, diria antes que o produto da multiplicação de um pelo outro, Existe essa aritmética, Dois, sejam eles quem forem, não se somam, multiplicam-se.”
    (O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago).

Escrever, exprimir “estados internos” ou “estados de fato”, dar à expressão uma multiplicidade que atravessa o corpo, ou melhor, que é o corpo, fazer-se palavra. Processo involuntário de identificação entre mundo e linguagem, o que se faz palavra é o efetivar-se da existência, carne que se faz verbo, corrigindo a narrativa do evangelho de João (João 1, 14). O estilo de Nietzsche, mais propriamente, os estilos de Nietzsche são o resultado desses trasbordamentos de forças que buscam a cada vez estender sua potência.
Nietzsche escreve em Ecce Homo: “Ouve-se, não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamento reluz como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma — nunca tive aqui uma escolha.” (Ecce Homo, Assim Falava Zaratustra § 3). Não ter escolha é constatar a ilusão da subjetividade pura, do intelecto “alheio ao tempo e à dor” (Genealogia da Moral, III § 12), na medida em que o pensamento é exatamente tempo e dor, “vivências” corporais como suas condições de possibilidade, “testemunho” da pluralidade de afetos, de olhares. Todo pensamento tem origem no corpo, no modo como este impõe exigências ao mundo ou, ao contrário, no modo como responde às ameaças com que se depara. O corpo, nunca é demais ressaltar, entendido como singular conformação de impulsos, organização provisória da multiplicidade sob uma determinada perspectiva. A palavra é expressão de uma vida ascendente ou de seu contrário, uma vida declinante, em fuga.
Mas o pensamento, que comumente identificamos ao conteúdo, é também forma, isto é, estilo. Poemas, aforismos, dissertações, autobiografia, cada estado de fato encontra sua adequada expressão estilística – também cada parágrafo, frase, palavra. Indissociáveis, portanto, pensamento (vida) e estilo (obra), um reenvia ao outro; antes de qualquer outra coisa, é pela forma que travamos contato com um conceito.
Nietzsche quer se fazer visível, quer mostrar quem são seus escritos: daí o esforço prematuro de escrever aos 44 anos uma autobiografia (obviamente não sabia que não teria outra chance) em que assume o dever de declarar “eu sou tal e tal” (Ecce Homo, Prólogo § 1). Quando ali narra a história de Assim Falava Zaratustra, no capítulo ou subcapítulo dedicado a essa obra, Nietzsche não se refere a precursores, estudos, debates acadêmicos, refere-se sim a suas viagens e caminhadas em Surlei e pela Itália: Chiavari, Roma, Nice. Agilidade muscular e força criadora seriam indissociáveis para Nietzsche, só levava a sério pensamentos surgidos ao ar livre, nunca quando se estava sentado. Modos idiossincráticos de criação filosófica: assim se manifestava nele Nietzsche a possibilidade de uma vida afirmativa, o modo como seu corpo impunha suas exigências ao mundo, criando a si mesmo e à sua obra, ou sendo arrebatado por ela.
Nietzsche quer se fazer visível, mas sua luz mais própria, diria Germán Meléndez, mais que a história visceral do surgimento de seus escritos, é seu estilo, aquilo que o singulariza toda vez em que um pensamento se expressa, toma forma. Por isso, afirma, não se pode adequadamente compreender Nietzsche senão através de sua própria obra, de uma “leitura sem intermediários”, do contato com as múltiplas formas em que ela se apresenta. O estilo deixa claro qual é a perspectiva a partir de que se fala, por mais provisória que seja a unidade alcançada que originou tal perspectiva.
O próprio Nietzsche trabalha essa questão quando do anúncio do eterno retorno em Assim Falava Zaratustra. Em “O convalescente”, Zaratustra resolve finalmente desafiar seu pensamento do eterno retorno para que ele se pronuncie, depois de mais de uma vez haver recusado sua vinda. Antes que seja capaz de fazê-lo, contudo, vêm a ele o nojo e o desespero de saber que o homem não é passível de aperfeiçoamento, que é eterno também o retorno do pequeno homem (que nega e se ressente da vida), e diante disso ser incapaz de superar o niilismo, a proclamação de que a vida não vale a pena. Zaratustra cai enfermo e permanece um longo tempo em convalescença. Seus animais, a águia e a serpente, é que vão romper o silêncio incitando Zaratustra a cantar, a criar uma nova lira para novas canções. Cantar: tornar-se aquilo que ele é, ou seja, o mestre ensinador do eterno retorno. Criar uma nova lira: dar nova forma ao seu pensamento, criar para ele um estilo único. (Mas não é isso o que faz o próprio Nietzsche com seu Zaratustra, ou seja, criar uma forma nova de expressão filosófica que desse conta acima de tudo do pensamento do eterno retorno?)
Mas Zaratustra não está suficientemente são. Ele deve ainda atravessar seu “grande silêncio” como estratégia de cura e fortalecimento, mas principalmente como ensejo para a criação de uma nova lira que lhe permitisse cantar em exaltação à vida e à eternidade (cf. Assim falava Zaratustra, O outro canto de dança e Os sete selos). Toda canção exige um instrumento adequado, mesmo Zaratustra tem de se tornar esse instrumento para ser capaz de abraçar seu pensamento do abismo. Do mesmo modo Nietzsche teve de se tornar Assim Falava Zaratustra, fazer-se palavra e estilo para expressar o eterno retorno de todas as coisas.
Se a obra de Nietzsche é expressão direta do “estado de fato” nietzschiano, corpo que se faz pensamentos, que dá a si mesmo novos contornos que extrapolam sua suposta organicidade, então ler Nietzsche não seria justamente ser atravessado pela mesma tensão que precipitou tais pensamentos? Se respondermos que sim, então ler Nietzsche ou escrever sobre ele não é apenas um “exercício de estilo”. Sua filosofia é o acontecimento Nietzsche, ou vários acontecimentos Nietzsche, oportunidades para que uma dada hierarquia pulsional expanda sua potência, torne-se visível e audível. Ler ou escrever sobre Nietzsche, nesse sentido, é certas vezes mais que o compreender, é permitir que com ele se componham formas novas, estilos, é ensejar que com ele novos mundos (hierarquias) se expressem. A leitura que a filosofia de Nietzsche convida a que se faça de si exige a interferência daquele que lê com aquilo que está escrito, tocar e deixar-se tocar pelo corpo-escritura que ali se fez expressão, compor com ele uma nova multiplicidade.






Uma outra versão deste texto foi publicada nos Cadernos Nietzsche, n.11, 2001.

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