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sábado, 14 de novembro de 2009

Reencontro (ou como desfazer para si uma linha de fuga)

Fazia um daqueles calores absurdos em São Paulo, em que as sombras das árvores e das marquises são disputadas pela multidão de passantes, em que estar dentro de um carro pode se tornar uma atividade de alto risco porque podemos derreter ali, fundindo-nos aos bancos de tecido rústico. Era melhor não sair de casa. Mas era tarde demais, já me via ali na Paulista. Olhando em direção às filas de carros que aguardavam o verde, o reflexo da luz nos parabrisas dava a impressão de que eu via um lago, com sua promessa de alívio e cura do sufocamento em que meus sentidos fremiam. Delírio, delírio, mais valia estar num deserto de verdade.
Comprei o livro que havia encomendado e resolvi voltar logo para casa, mesmo sentindo-me no jardim das delícias por causa do ar condicionado da livraria. Talvez eu pudesse ir no cinema, para descansar um pouco dos barulhos do mundo, do marulhar dos motores a combustão. Mas aí eu teria de passar no banco antes, porque havia gastado o dinheiro com o livro. O banco ficava perto do ponto de ônibus, difícil saber qual dos dois eu escolheria, tirar dinheiro e ir ao cinema ou pegar o ônibus pra casa, quem sabe no caminho eu topasse com uma decisão.
Tristes trópicos era o livro que eu levava em mãos. Voltei pra livraria, pedi um café. O que será que é mais lucrativo para a livraria, vender livros ou cafés? Eletrônicos, sem dúvida, mas não era o caso dessa, que não os vendia. Comecei a ler o livro ali, torcendo para que meu cafezinho durasse muitas horas, porque com ele eu tinha exaurido meus últimos trocados. Um casal sentou ali do meu lado, viram o que eu lia:
– Que pena a morte do Lévi-Strauss, não.
– Pena? Como assim, ele já tinha cem anos, não ia durar pra sempre…
Hahá, ri por dentro, não foi muito simpático o que eu disse, mas não pude evitar. Um pouco constrangido por meu comentário, ele replicou:
– Ele vai sim durar para sempre, em sua obra, blablablá…
Clichês, como me irritavam clichês:
– Ah sim, claro, você tem razão. Com licença.
Tive de sair dali, de meu refúgio do calor da cidade, decidiir pra casa ler o livro, se a vizinha maluca não resolvesse ouvir seu rock-bíblia àquela hora da tarde. Mas o casal só quis ser simpático e eu saí de lá rispidamente. Por que será que sempre ajo assim quando as pessoas são simpáticas comigo? Deve ter algo a ver com minha mãe, a última vez que ela foi simpática comigo foi quando lhe contei que minha gatinha havia morrido trucidada pelos cães da vizinha. Ela disse:
– Pelo menos você tem alguma coisa a menos pra se preocupar.
Mas eu não tinha mais tempo a perder com minha mãe, tinha de voltar logo pra casa, ligar o ventilador e… Nesse exato momento, o mundo parou.
Sim, era ela. Só podia ser. Meu mais antigo amor, o primeiro, talvez o único, sim. Apenas com o delicado problema de que ela nunca soube disso. Dez anos depois, ela estava ali, passando pela calçada, empurrando um carrinho de bebê. Dez anos? Que nada, fazia bem mais tempo desde que ela desaparecera. Ela tinha casado com não-sei-quem-cheio-de-dinheiro. Comecei a segui-la, ela desceu a rua Augusta, com rapidez, fugindo do calor, provavelmente. Entrou numa galeria, protegida do sol, tirou o bebê do carrinho, abraçando-o e virando para trás, dando de cara comigo. Disse ela:
– Não acredito que é você, meu deus, há quanto tempo?
Minha surpresa foi tão grande que mal pude retribuir o abraço.
– Mil anos, não?
– Também não exagera, né?
– É seu filho?
– Não, não tenho filhos, é de uma amiga, que foi trabalhar…
– Você não tem filhos?
– Não, não tenho.
– Nossa, eu te imaginava gor..., quer dizer, com uma dezena de filhos…
Não, eu não disse isso, sim disse, caralho…
– Hahá, não, não. Meu ex-marido…
Nem ouvi o que veio depois, só ouvi ex-marido.
– Então, você não está casada?
– Não, e você?
– Também não. Você sumiu.
– Não sumi, não, moro a três quadras daqui…
– Então fui eu que sumi.
– É…
– Você está linda.
– Obrigada, você também não está de se jogar fora.
Puta merda, por essa eu não esperava. Lembrei do livro, do ventilador, dos cães, de minha mãe, do rock-bíblia… Não tinha mais nada pra dizer. Ela cantava baixinho pro bebê, que começava a acordar.
– Como é o nome dele?
– Giovane.
– Ah.
– Nossa, foi uma supresa mesmo te encontrar, blablablá.
Nem conseguia ouvir o que ela dizia, hipnotizado que estava com o simples fato de ela estar ali.
– Eu te amo.
Não, isso eu não disse, nem fazia o menor sentido. Seria engraçado se eu tivesse dito. Não, ao invés disso, eu disse que precisava ir.
– Ah, já? Não quer tomar um sorvete no shopping?
– Ah, quero sim.
Fomos ao sorvete no shopping, ela cada vez mais linda, insinuante, o desejo se propagava em mim com a força de um verão nos trópicos.
– Sabe, preciso ir mesmo, espero te reencontrar em breve.
– Ah, me liga, anota o telefone.
– Tá.
– Foi muito bom te encontrar, blablablá…
– A gente se vê.
É. Fui embora. Pensando que talvez voltasse a encontrá-la por ali. E que dissesse a ela o quanto ela era especial e o quanto eu a faria feliz se tivesse uma chance, apenas uma. Quando saí, o tempo havia virado assim, de repente, como só em São Paulo era possível. A chuva caía em grossas gotas. Corri para o ponto. Antes, passei pelo banco para tirar dinheiro. A senha: 1609, a data do aniversário dela. É, acho que eu a havia perdido para sempre, que eu precisava perdê-la. Ao menos, se ela não tivesse sido tão simpática comigo…

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O labirinto que de fato amedronta:
encruzilhada do tempo
o presente se vive como lembrança
e como futuro
as aspirações e desejos impossíveis enfim realizados.
Todos os caminhos percorridos na velocidade infinita
e todos trazem de volta ao mesmo:
verdadeira espiral do tempo.
Ao invés de nos lançarmos na distância criadora,
afundamos mais e mais em nós, sem mais, nem menos,
ah, quisera eu viver lá nesse instante sem voz
em que a encruzilhada habita, liberta, a memória
estraçalhando a carne com meus dentes de urso.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Gabriela

Onde você está? Estou no carro, no posto, em frente da loja. Ah, já estou indo aí." Quase uma hora esperando Gabriela chegar, várias latinhas de cerveja enquanto observava a chegada das pessoas, adolescentes na maioria, diversos casais de meninas de mãos dadas. Ela estava ali bem do lado do carro, vestindo alguns centímetros quadrados de pano, um vestido que generosamente se retinha acima de suas coxas e deixava descobertas suas costas. Um corpo esguio, que reforçava o apelo sensual de seu quadril. Um pouco sem fôlego, apaguei o carlton, saí do carro. Ela: "Faz tempo que está aí? Não, acabei de chegar. Ah, vem vou te apresentar meus amigos: Aninha, Mari, Sol, Júlia, a Júlia também é professora, e o Robson. Oi, oi, oi, e aí?"
Foi de manhã, depois da aula, que Gabriela me convidou pra ir dançar, com ela e com uns amigos. "Ah, mas meus amigos são gays, não tem problema, né? Claro que não, mas esse lugar é só pra gays? É, mas é superlegal, você vai adorar, e nem encana que está escrito em sua testa que você é hetero, ninguém vai te incomodar."
"Vocês esperam um pouco, vou estacionar o carro." As pessoas não paravam de chegar, faziam fila em frente da loja de conveniência do posto para comprar cigarro e bebida, depois iam para a fila da boate. Nossa, há quantos anos não ia num lugar assim, que estilo têm essas pessoas. Mas Gabriela se sentia em casa, que linda, que simpática, sorrindo para todos, brincando com seus amigos. Não via a hora de morder aqueles lábios, mas ela dissimulava bem, parecia que estava indiferente à minha presença. Bem, eu já conhecia sua história, sabia de seu fracassado casamento, que a fez protelar os estudos, sabia que não queria relacionamentos sérios, ao que eu não tinha nada a objetar. Sim, sua boca aguardava a minha, seu vestido aguardava um leve gesto para deslizar por sua cintura e ser lançado ao chão, expondo seus fartos seios, seus mamilos duros que se entreviam sob o leve tecido. Acho que ela não está de calcinha e se está deve ser ínfima, mas preferia que ela tivesse pelos pubianos, não entendo essa moda de raspar tudo, os pelos dão mais equilíbrio, dão mais graça à mulher.
"Vamos indo, vem, não precisa ir na fila, conheço o pessoal." Mas o que era essa mão dada com a mão do, como era mesmo o nome do amigo dela? "Gabriela, ele é seu namorado?" Era melhor perguntar agora, antes de entrar, gastar uma boa grana pra ficar sozinho lá dentro, ficar sem ela. "O Robson?" É, o Robson, um lindo rapaz de vinte e poucos anos, com um jeitinho tímido, ela só podia estar a fim dele, o que explicaria seu ar indiferente em relação a mim. "Robson, ele perguntou se você é meu namorado, ah, ha, o Robson é gay." Ai, que alívio, e que vergonha também, mas eu tinha de perguntar, agora o caminho está livre, ansiedade, ansiedade, não consigo tirar os olhos de seu rosto, suas pernas, seu longo cabelo liso, suas pernas, seu quadril. Ela conseguiu fazer todo mundo entrar, furando a fila, quase fiquei pra trás, mas o segurança deve ter percebido os traços do desespero tomando conta de meu rosto e me puxou pra dentro.
Mas ainda tinha uma fila lá na entrada, para pagar, nossa, que caro, professor acha tudo caro. "Eu estava contando pra Sol sobre Nietzsche, ela está desesperada comigo porque me tornei pagã! Pagã, que bacana. É, queria te agradecer por isso, suas aulas me ajudaram a me livrar de algumas culpas que eu sentia… e ressentimento também, casei muito cedo, era da Igreja Batista, ia a todos os cultos, você acredita?" Não, não acredito. "Batista é? É, Batista." Sol olhou pra mim estranho, acho que não foi com minha cara. Tinha muita gente ali na entrada, as meninas foram subindo, fiquei preso na aglomeração. Robson chegou perto, depois de um tempo, conseguimos chegar até os seguranças, que nos revistaram. Robson: "Aproveita que até a uma os drinques valem por dois. Quê?" Conforme íamos subindo a escada o som ficava muito alto. "Cada drinque vale por dois! Ah, valeu."
Do topo da escada se avistava toda a boate, cada vez mais cheia, pessoas dançando música eletrônica, muita luz ritmada pelas batidas do som. Caminhei por todo o lugar, com garrafinhas de cerveja que valiam por duas, a pista de dança estava cheia, foi bom ter percebido logo que ela é giratória, ou melhor, tem dois discos que giram um para cada lado, carregando consigo dezenas, talvez centenas de pessoas dançando. Meninos se beijando nos cantos mais escuros e nos cantos mais claros, alguns dançando sem camisa à vista dos outros. Já estava me excedendo na cerveja quando finalmente encontrei Gabriela. "Ei, fica aqui um pouco. Gostou do lugar? Legal, bem. Eu venho aqui direto, arruma um cigarro? Claro." Acendi o cigarro pra ela: "Que bom que você me convidou. Ah. Você está linda, sabia?" Ela se aborreceu um pouco com o elogio, deu um passo para o lado, um gole de cerveja, um trago no cigarro, entretendo-se consigo mesma, depois soltando seu corpo ao ritmo do som. Sol a puxou para um canto, meia-luz, tocou seu rosto, deu um beijo na boca de Gabriela, ali, na minha frente, suas mãos deslizaram pelas costas de Gabriela e a puxaram para junto de seu corpo. Ficaram se beijando ainda algum tempo.
"Preciso sumir daqui." Pensei, mas já estava muito alcoolizado para isso, fui ao banheiro masculino, cheio de gente de todos os sexos, conversando alegremente. Parei um pouco ali, em frente do enorme espelho, às vezes olhava o espelho e não me via, via meu pai. Como eu podia me livrar daquele rosto que me observava tão atentamente, que esperava de mim o que eu não podia ser? Levei ainda um tempo observando aquela cena refletida no espelho, sem saber se eu de fato fazia parte dela. Estava usando o mictório quando Gabriela chegou por trás de mim: "Ai, desculpa, eu queria ter dito antes que estava ficando com a Sol. Não tudo bem, só espera eu terminar aqui. Tudo bem, então você não se importa? Me importo sim, é que gosto de você. Gosta de mim? É, acho que estou apaixonado. Apaixonado, mas eu não sou hetero. Não, nem um pouco? Não, já disse, estou namorando com a Sol. Você não disse que estava namorando." Essa conversa não ia levar a nada, disse que ia pegar uma bebida e Gabriela foi junto. "Olha, agora estou me sentindo mal, te convidei pra vir aqui… Dá um beijo. Não, a Sol é superciumenta. Gabriela, por que você me convidou pra vir aqui?" Um tumulto perto do balcão arrastou-nos para sentidos opostos, um pouco à distância, pude ver seus olhos umidecerem, virou-se e perdeu-se na multidão.
"Vai se foder, cara, não vê que a Gabriela é minha, filho da puta, sai fora." Era Sol. Mostrou que estava insegura e percebi, então, que eu ainda tinha chances com Gabriela. "Ô Sol, nem adianta, vou roubar ela pra mim, tenho uma coisa pra ela que você não tem." Ela fechou os punhos. Preparei-me para esquivar. Por sorte, ela me lançou apenas um olhar de puro ódio e se foi.
Alguns minutos mais tarde, vi de longe as duas discutindo, Gabriela deu a volta, rodopiou com a pista, em meio à multidão, olhou pra cima, me viu, deu outra volta, foi em direção à escada, subiu na minha direção, me puxou pelas mãos. "Vem, vamos lá fora um pouco." Saboreei, naqueles instantes em que era conduzido assim por ela, a libertação de todas as minhas aflições, o mundo se recompôs diante de minha embriaguez. Sim, eu poderia amá-la para sempre, só precisava de uma chance. Lá fora, o ar fresco me fez bem, segurei Gabriela: "Onde você está me levando? Ali no posto, o Robson foi comprar cigarro." Paramos perto da loja do posto. Tentei puxá-la para perto, mas ela resistia. Beijei a rosa tatuada em seu ombro direito. "Não vou ficar com você nunca. Nunca? Nunca. Por quê? Olha, meu casamento foi uma merda, não, não foi uma merda, David é um amor, só que eu sou muito nova, quero fazer um monte de coisas… não quero que ninguém se apaixone por mim, a Sol nem me conhece, você nem me conhece… vou me formar, vou passar num concurso… olha o Robson, vem."
Soltei suas mãos, o que mais eu poderia fazer? Uma lucidez mais forte que a vida tomou conta de tudo, a tristeza. "Vou embora. Mas você não está bem pra dirigir. Estou sim, o ar fresco… Fica mais um pouco, vamos voltar pra dentro. Não, vou embora." Observei Gabriela caminhando, de volta para a boate, olhou pra trás, os mesmos olhos tristes, o mesmo desespero em sua boca. Senti uma ternura infinita por ela, queria mostrar a ela que nem todo relacionamento é igual, que ela não precisa afogar seus planos, anular a si mesma para viver um amor, que o amor podia até mesmo libertá-la dessas ridículas expectativas construídas em torno de sua vida. Daria o mundo todo pra ela. Por que caminhos inóspitos ela se perderia, eu me perderia, até aprender a descrer de si mesma? Ela descera ao labirinto e fora salva por Teseu, sem saber que era Teseu quem devia ser morto para que ela esposasse o Minotauro.
Lembro que cheguei no carro, sentei, dei a partida. (…) Robson bateu na janela, abri. (…) Gabriela segurava minha cabeça que se apoiava em seus ombros. O carro em movimento. (…) A rosa. (…) Um elevador abrindo a porta. (…) "Toma isso aqui, vai te fazer bem" (…) Vem, tira o tênis. (…) Desejo. Mãos macias em meu corpo. Prazer. Gozo.
Acordei sozinho numa cama de casal em um quarto em que nunca havia estado. A porta estava aberta e por ela entrava uma luz que indicava ser dia. Gabriela estava dormindo num colchão ao lado da cama, abraçada com Sol. Um leve lençol permitia ver os contornos de seus corpos nus, ombros e pernas à mostra. Eu também estava sem roupas, sem lençol, sem nada. Gabriela acordou, me olhou, ergueu-se em minha direção. "Que bom que terminou tudo bem." Deu-me um beijo na boca, seus seios roçaram em meus braços. O desejo redespertou-se em mim. Nesse instante, ouvi o som de um chuveiro, virei o rosto com uma expressão incômoda. Gabriela sorriu: "O Robson vai na padaria daqui a pouco, vai fazer um café pra gente".

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A cidade invisível


Nem todos os habitantes de F, principalmente os mais antigos, sabem que sua cidade é uma ilha. Isso acontece porque quem se afasta do centro, sempre é retido por amplas avenidas em que transitam milhares de automóveis sem parar um segundo, de cá pra lá e de lá pra cá. Ainda que fosse possível atravessar caminhando alguma dessas avenidas sem ser atropelado, não há muitas razões aparentes para isso, já que do outro lado, existem apenas gigantescas lojas que vendem carros, peças para carros e coisas afins. As lojas estão enfileiradas, coladas umas nas outras, todas de frente para a avenida e, segundo imaginam os que chegaram a F mais recentemente, de costas para o mar. Assim, quem quisesse se aventurar a chegar até o mar, teria basicamente três gigantescos obstáculos: atravessar em meio ao fluxo inexorável de veículos, encontrar uma passagem inexistente entre os prédios contíguos que se enfileiram por dezenas de quilômetros e a alternativa que resta, a mais acessível, que é por um dos cento e trinta canais que, costurando em meio aos bairros, acabam por desembocar no mar. Este é o mais feroz obstáculo, precisamente, por dois motivos. Primeiro, porque as casas e ruas vão espremendo os canais, de modo que, em pelo menos uma centena deles, apenas canoas de, no máximo, um metro de largura e dois de comprimento conseguem contornar as colunas e paredes fincadas em seus leitos; em alguns trechos, o próprio canal foi cimentado e as canoas não podem ir além. O segundo motivo é que, embora os outros canais sejam bem mais largos, ali se navega junto de todos os resíduos produzidos por todos os moradores de F. Suas águas são caudalosas e espumantes, seu cheiro fétido é sentido em todos os lugares da ilha, exceto nas lojas do lado de lá da avenida e, quem sabe, no interior dos automóveis.
Quem quer que chegue em F, seja pelo ar ou pelo mar, é surpreendido pela visão de imensas manchas escuras no desembocadouro dos canais, e pelo cheiro pouco aprazível que espelem. Mas, ainda assim, as pessoas não param de afluir a F, seduzidas pelas promessas de financiarem um apartamento com vistas para o mar. Consta também que ali se podem comprar carros pela metade do preço.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

O imperador da ilha


“Aí depende do que você chama de amizade…”
Certo, a gente estava ali há apenas quarenta minutos e as coisas já começavam a ir mal. Será que algum de nós achava mesmo que éramos amigos? Fazia uns três anos que não nos encontrávamos. Mas precisava ser amigo para ir tomar um chope no bar?
“Cara, amizade pra mim é isso aqui, poder sair e lembrar das coisas que a gente fez, rir das mancadas.”
“Mas isso não dá o direito de fazer esse tipo de acusação, sem noção esse cara.”
“Não fiz acusação nenhuma, apenas disse uma coisa que aconteceu e todo mundo fez que esqueceu.”
“Acontece que só você lembra dessa merda, quem será que está errado?”
Ele tinha razão. Ninguém se lembrava. A não ser o Júlio. Nenhum dos outros dois, nem eu, estava na cara que o Júlio estava delirando. Mesmo já tendo passado quinze anos, ninguém esqueceria duma coisa daquelas.
“Olha, eu também tentei esquecer, é melhor esquecer do que conviver com isso, sorte a de vocês, então, se não lembram.”
“Quando você falou que foi?”
“Porra, foi a única vez que a gente foi pra Ilha Grande. Vocês precisam de ajuda pra lembrar, beleza, eu conto. A gente foi caminhar à noite, pegou aquela trilha que ia dar na prisão, estava uma lua linda, a gente bebeu, mas foi pouco, não tem a ver com isso, tem a ver com cabeça fraca. Tinha aquele maluco, que ficava na rua, doido mesmo, maltrapilho, falando pra pessoas que só ele via.”
“Não lembro nada disso, vocês lembram?”
“Eu lembro que a gente saiu à noite.”
Eu não lembrava de nada, continuei quieto.
“Daí você chamou o cara, quis tirar onda com ele.”
“Você’tá louco.”
“Não estou não, você que não quer lembrar, porque foi sua a idéia de ir lá, tirar onda com o cara. Daí a gente chamou ele pra subir no aqueduto, todos nós. Vocês dois na frente, nós dois atrás. O maluco dizia, meio gritando, ‘Eu sou o rei, o imperador desta ilha, nenhuma mulher manda por aqui, eu sou o rei, todos serão expulsos, menos a minha rainha’. Então ele caiu, não sei, não vi direito se tropeçou, se jogou, acho que não, despencou mesmo, caiu de cabeça.”
Então, a gente ficou olhando pro Júlio, sem saber se ele falava sério, se a gente caía na gargalhada ou o quê. Mas ele permaneceu mergulhado em si mesmo, absorvido pela própria história. Cheguei até a cogitar que ele estivesse certo, que a gente tivesse apagado da memória aquilo tudo, perguntei o que houve depois.
“Ele caiu de cabeça, quebrou o pescoço, morreu e a gente saiu correndo, deixou ele lá.”
“E no dia seguinte?”
“Fomos embora, pegamos o barco bem cedo, morrendo de medo que descobrissem.”
Ficamos quietos. Júlio de cabeça baixa, olhando para o copo que segurava com as duas mãos, sem dizer mais nenhuma palavra.
“Disso eu lembro, que a gente foi embora bem cedo.”
“Fica quieto, isso não tem nada a ver com essa história maluca, que viagem.”
Júlio levantou, caminhou até a porta do bar, ainda com o olhar perdido na trama dos pisos decorados. Deu uns passos em direção à esquina, sumiu de vista. Achei melhor a gente ficar ali, dar um tempo pra ele.
“O que foi que aconteceu?”
“Acho que eu sei, a mulher dele foi embora de casa, nem deu satisfação. Faz uns meses, acho que quase um ano.”
“E ele não contou pra ninguém?”
“Não, ele se fechou, eu soube porque tem um cara no trabalho que conhecia a mulher dele.”
“E você não fez nada, nem ligou pra gente…”
“É, não fiz nada, nem liguei, assim como nenhum de vocês me ligou quando minha irmã ficou um mês na UTI… Nem quando a filha dele nasceu. Nem quando você comprou o apartamento. E por aí vai.”
“É, bela amizade a nossa.”
“Que merda.”
“Espera um pouco, tem uma chamada, da casa do Júlio.”
Esperamos. Que idéia essa de reencontrar os amigos da adolescência. Quanta coisa já havia se passado, cada um cuidando apenas de sua própria vida. Eu me perguntava se alguma vez nossa amizade havia realmente feito falta para algum de nós, nesses anos todos.
“Vocês não vão acreditar, era a Miriam.”
“A mulher do Júlio!”
“Ela recebeu meu recado sobre nosso encontro aqui, ligou pra dizer que faz oito meses que o Júlio foi embora de casa, sem dar satisfação, e que se a gente soubesse alguma coisa dele era pra avisá-la…”
“Não é possível.”
“Vou lá fora, ver se encontro ele.”
Fomos todos. Vasculhamos todo o bairro, ninguém o havia visto, nem a pé, nem de carro. Sumiu como uma sombra em meio à espessa noite.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Abismo

Impressionante este lugar!
É, eu te falei.
Esse vento é assustador, olha o tamanho daquelas pedras lá embaixo.
E olha o tamanho das ondas que arrebentam nelas.
Puta que pariu!

Quantos metros de altura tem esse costão, uns 50, 100?
Não sei, acho que nunca ninguém mediu.
E fica tão perto, né? Cuidado aí, não fica na beirada, querido.
É, daqui dá pra ver o Morro da Cruz, lá no centro.
É mesmo…
Continuando a trilha vai dar na Lagoinha do Leste.
Nossa, mas a gente já andou bastante…
Bastante.
Mas, então, meu amor, por que você queria tanto me trazer aqui?
Pelo mistério.
Como assim, vai dizer que tem bruxas aqui no morro, hahá…
O mistério da vida, a gente só consegue perceber isso quando está muito próximo da morte…
Quê? Não, você está enganado.
Parece que tem uma força aqui, vinda das pedras lá em baixo, que atrai tudo, que nos puxa.
Querido, cuidado, você está muito na beirada e está me assustando com esse papo.
Não aguento mais isso…
Quê?
Você sempre foi muito prática, me convenceu que devia sair de casa, que era só sair de casa e…
Meu amor, o que está havendo? Pensei que você estivesse feliz comigo.
Não consigo conviver com isso, com o fato de ter abandonado meu filho e minha mulher.
Como você pode dizer isso, você não suportava aquela mulher!
Cala a boca, você não sabe de nada.
Cala a boca? Porra, o que que está havendo?
Vem cá.
Não, me solta.
Vem aqui perto, olha lá embaixo!
Não, a gente vai cair…
Não enquanto eu estiver te segurando.

Para de chorar. Eu queria que você entendesse como me sinto. Caminho todos os dias como se estivesse à beira de um abismo.
Você está machucando meu braço…
Não suporto essa culpa, meus pais nem olham nos meus olhos, meus amigos sumiram. E tudo por quê?
Por amor, por nosso amor, você não acredita mais nele?
Não posso.
Não pode?
Não consigo mais olhar pra você. Você é como os gatos.
Quê?
Sim, acha que pode tudo, que não há limites.
Então você não gosta mais dos gatos?
Minha mulher vai casar de novo.
Eu sou sua mulher.
Ela vai casar de novo e eles vão se mudar. Meu filho vai embora.
Que droga…
Por isso eu queria vir aqui, pra você entender como é, todo dia, ter vontade de se jogar num abismo. Veja aquelas ondas, elas vão nos libertar dessa dor.
Me solta, desgraçado, eu não vou morrer por causa sua, seu covarde filho da puta.
Está vendo como você só pensa em você, está certo, pode ir, vou ficar por aqui.
Vou mesmo, olha a marca que ficou no meu braço, está doendo. Covarde. Tomara que se jogue, mas não, você não tem coragem.
Então fique pra ver.
Idiota. Você não vai mais me encontrar em casa quando voltar.
Não vou voltar.
Ótimo porque aí vou contar pro meu filho que o pai dele era um idiota que preferiu fugir das coisas.
Filho?
É, o meu filho que vai nascer, mas você nunca vai ver a cara dele. Você nunca vai saber se ele vai ter seus olhos, seus cabelos. Mas você vai saber a hora exata em que eu deixei de te amar…
Espera, não vai embora. Não me deixa aqui sozinho. Não.

sexta-feira, 27 de março de 2009

A linha de fuga de Antoine


Reflexões sobre Os incompreendidos de François Truffaut (França, 1959).


“?El ojo que ves no es ojo
porque tú lo veas
es ojo porque te ve?”
Antonio Machado

Os internos de um centro de observação de delinqüentes juvenis, na França, disputam uma partida de futebol. A câmera, em plongé, acompanha a ação. Um dos detidos é Antoine Doinel, de aproximadamente 13 anos. Os espectadores já o conhecem bem, acompanharam a série de acontecimentos que o levaram até ali, sabem que sua mãe tirou-lhe toda esperança de ser reintegrado à sua vida anterior, seu convívio familiar, seus amigos, sua escola. Segundo ela, Antoine deve ser encaminhado a um campo de trabalho, como parte de seu processo de “ressocialização”; além disso, ela lhe conta que seu pai já não se importa mais com ele. A bola sai pela lateral e Antoine a busca e a recoloca em jogo. Em seguida, corre quase em direção à câmera que se move focalizando à sua esquerda, abaixo, para um buraco na cerca, por onde o menino passa sem dificuldade. A câmera retorna num movimento rápido para o ponto de partida da corrida, donde vem o funcionário da instituição para persegui-lo; ele também se esgueira pelo buraco. Quando o funcionário passa, a câmera procura no fundo do plano Antoine em fuga, contornando um lago, inserindo-se numa paisagem campestre. O funcionário, no seu encalço, entra no mesmo quadro. Todo esse plano-seqüência se realiza com a câmera apenas movendo-se sobre seu eixo: diagonal para baixo para a passagem pela cerca, depois horizontal para enquadrar o menino em fuga, a quase 180º do ponto de partida.
No plano seguinte, o menino despista seu perseguidor. A câmera move-se apenas o suficiente para mostrá-lo escondido enquanto o funcionário passa.
Segue-se, então, o plano-seqüência da corrida de Antoine. A concepção é simples: num plano americano não muito rigoroso, movendo-se da esquerda para a direita do quadro, a câmera o acompanha em um travelling por mais de um minuto (78 segundos). Atrás dele, vemos uma paisagem rural de pequenos campos cercados, sem quaisquer pessoas à vista, vemos árvores e arbustos esparsos. O menino segue correndo, sem olhar para trás, sem saber o que o espera na frente, inteiramente sozinho vai cortando aquele caminho desolado. Seu rosto está praticamente impassível, não há traço algum de medo ou de coragem, de tristeza ou de alegria; o que sua marcha expõe é a determinação de seguir em frente, a despeito (ou apesar) de todas as instâncias disciplinadores que se atiram sobre sua vida.
O que mais pode nos contar essa seqüência da fuga de Antoine que nos remeta para além do filme de estréia de Truffaut? O que há de novo nessa seqüência de Os incompreendidos que aponta para novos caminho para a cinematografia francesa e mundial?
Dentro dos modestos objetivos deste ensaio, apenas pontuaremos algumas reflexões que nos permitirão situar o filme, de 1959, nos marcos de uma ruptura que uma nova geração de cineastas franceses provocaria com suas obras, ruptura que viria a ser conhecida como Nouvelle Vague.
A Nouvelle Vague visa ao distanciamento em relação ao cinema de estúdio do pós-guerra francês, no qual havia pouca margem para o improviso e acentuada preocupação técnica na construção de imagens pseudo-realistas. Em Os incompreendidos, filma-se nas ruas de Paris, num reformatório, com a presença de não-atores e atores amadores, sobretudo as crianças, dando ao filme um tom de documentário. O realismo não está mais nos marcos da representação realizada pela decupagem clássica a partir de enredos marcadamente literários, mas justamente naquilo que nega isso tudo, ou seja, em permitir o desenrolar da história diante da câmera, em cenas que se misturam ao cotidiano da cidade, que permitem ao espectador uma presença que não é mediada pela invisibilidade da câmera e da montagem, mas uma presença imediata que lhe permite acompanhar criticamente o desenrolar de um acontecimento, daí a prerrogativa dada aos planos-seqüência, notadamente no filme de estréia de Truffaut, de acordo com os exemplos descritos acima. Colocamo-nos ao lado de Antoine em sua corrida, não porque a câmera nos provoca a ilusão da presença na invisibilidade, mas porque ela nos provoca a apreender o sentido de sua marcha, a refletir sobre a estupidez das razões de seu internamento e daquilo que provoca sua fuga. Ainda, essa co-presença nos desafia a pensar como alargar os horizontes de possibilidades dessa vida que, ao contrário, as instituições pretendem cercear através do disciplinamento. Tudo está contra Antoine, tudo indica a ausência de saídas, mas a potência de sua marcha, a determinação de seu olhar sempre voltado para a frente nos dizem o contrário. Não estamos diante de uma identificação barata com um personagem cuidadosamente construído pela máquina de produzir ficções do cinema tradicional, mas de um ser que, ainda que possa ser igualmente ficcional, possui a universalidade em seu rosto humano. Mais que seu rosto, o que a câmera mostra é um corpo que age, que quebra com seu ritmo vigoroso todas as grades e cercas que se interpunham entre ele e o mundo.
É certo que esse recurso ao plano-seqüência não será uma tônica da Nouvelle Vague. Outros recursos serão mais comuns que esse, como a descontinuidade da narrativa, o uso freqüente de flashbacks, a explicitação da figura do narrador, entre outros. Justamente nisso reside o interesse dessa opção de Truffaut nessa obra emblemática. O efeito que se busca é praticamente o mesmo, provocar o espectador a reaprender o cinema, explicitar algo que nunca deveria ter deixado de ser óbvio, isto é, que a história não se conta a si própria, mas é fruto de um trabalho criativo de um autor e de sua equipe, munido de um dado aparato técnico, de uma linguagem própria constituída de blocos de imagem-movimento e imagem-tempo.
Talvez se possa afirmar que Os incompreendidos esteja sob a influência de André Bazin, que proibia a montagem quando o sentido da ação dependesse da contigüidade física dos seus elementos constituintes, isto é, da integridade de um acontecimento. Afinal, o que seria do plano da marcha de Antoine se a montagem alternasse recuos e avanços, diferentes ângulos, closes, etc.? Seria possível abarcar o sentido desse acontecimento ou seríamos apenas conduzidos pela câmera a uma emoção qualquer, que apenas aguarda uma consumação, deixando-nos a falsa saciedade do entretenimento?
Retomemos o filme. A fuga de Antoine o leva à costa. A câmera descortina o estuário, a escadaria por onde desce o menino, a areia da praia. Ele continua correndo. Olha para um lado, depois para o outro. A praia está vazia. A câmera o acompanha mais uma vez num longo travelling. Embora continue correndo, seu corpo demonstra uma relutância, uma apreensão diante do encontro que se aproxima. Nunca havia visto o mar. Sua marcha se detém quando seus pés pisam na água. Antoine caminha então em direção à câmera, procura por ela e seus olhos nos surpreendem a observá-lo. Colocamo-nos, assim, diretamente na história da vida desse menino, não apenas um indivíduo, mas uma singularidade porque carrega em si a universalidade de seu acontecimento, isto é, de sua resistência, de sua sinceridade, de sua busca, de sua fuga. Como sugerem os versos de Antonio Machado, em epígrafe, os olhos que vemos não são olhos porque os vemos, mas porque podem ver e, ainda mais, porque podem nos devolver o olhar. Logo, se também nosso olhar pode ser visto, surpreendido assim por Antoine, é porque realmente reaprendemos algo, tornamo-nos novamente capazes de ver.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Últimos dias de desterro



Todas programadas desde cedo essas aflições

estupidamente acolhidas

vividas até o fim

impiedosamente produzidas.

Sim, existe essa coisa inimaginável:

máquina de produzir aflições

sob a pele

reproduzindo em nós os desejos alheios.

Ela produz

reproduz

programa

até assume o controle.

Mas veja, agora, como ela se cala:

é que ela não sabe nadar nas águas douradas da lagoa

quando no mundo os ruídos são mais fortes

é que ela nada pode contra o encontro dos ventos, das rochas, das águas

correntes que nos atravessam de fora.

A máquina não é o império.

Veja como, agora, ela se cala:

nada pode contra as alegrias nascidas dos bons encontros

que trocam palavras, abraços, confiança

nada pode, essa máquina, contra os amores que se vivem intensamente e apesar de.

Movimentos que enlaçam, conspiram, atravessam.

Nem fora, nem dentro

mas por toda parte

sempre algo se produz

que as aflições se calem é a conquista dos domadores de monstros

seres sem carne nem osso

são feitos de correntes e fluxos

que escapam atravessam

que não se podem conduzir

são feitos de águas e ventos e rochas

de peles, de cheiros, de fluxos.

São a vida em estado desfixo.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

O mundo das coisas


Análise da adaptação do livro O cheiro do ralo de Lourenço Mutarelli (Ed. Devir, 2. ed., 2007) para o filme homônimo de Heitor Dhalia (Brasil, 2007). Roteiristas: Marçal Aquino e Heitor Dhalia.


Há diversas características no enredo de O cheiro do ralo que fazem dele um drama marcadamente contemporâneo, que permitem uma reflexão acurada sobre as condições atuais de construção da subjetividade, em que as relações humanas, inclusive afetivas, são mercantilizadas, a televisão se imiscui na mente das pessoas, controlando muitas de suas pulsões, em que a violência aparece como válvula de escape para a solidão e o tédio. Com exceção da onipresença da televisão e do discurso publicitário, que é pouco explorada no filme, todos os outros aspectos constituem o cerne da história (tanto no livro, quanto no filme) de um pequeno empresário paulistano que, consciente de que nunca gostou de ninguém, deseja possuir a bunda, isto é, a bunda da garçonete da lanchonete que freqüenta. Não se trata meramente de um impulso sexual, mas de possuí-la como um objeto ou de consumi-la como uma imagem ou uma mercadoria qualquer, de modo que só poderia atingir seu intento se pudesse pagar para ver a bunda, reduzindo desse modo a garçonete a uma coisa entre as outras coisas usadas, aquelas que compra em sua loja para revender com lucro.
A complicação da história está no fato de que a bunda não é acanhada, coitadinha, dificultando o objetivo do protagonista. Dificultando apenas, porque no final das contas a moça fica desempregada e acaba por aceitar o dinheiro para mostrar-se. É assim que o fetichismo, a coisificação das relações humanas é levada ao paroxismo, pois tão logo pode possuir a bunda, o protagonista já não se interessa mais por ela, porque ela vale enquanto busca, não como objeto; enquanto desejo que tão logo é saciado pela posse do outro, deixa apenas o vazio.
O livro de Mutarelli conta essa história através do discurso indireto livre, em primeira pessoa, não apenas para registrar os monólogos do protagonista e os diálogos entre personagens, mas também e indistintamente os pensamentos, as lembranças, as imagens e falas que constrói ou que reproduz a partir da programação da TV, bem como a descrição das ações. Deixa alguns indícios de que seus sonhos e delírios se misturam à realidade, de que estava dormindo quando alguns fatos se sucederam ou que estava sob efeito de antidepressivo. Tudo isso aparece num fluxo de linguagem com um ritmo alucinante. Os capítulos têm tamanhos bastante distintos e estão subdivididos por traços, inúmeros traços que funcionam como cortes desse fluxo, que remetem o leitor de um lugar a outro, de uma ação a outra, com elipses temporais; servem também como cortes no fluxo dos pensamentos. No entanto, esses cortes não dependem dos traços, podem dar-se de uma frase a outra, em que diferentes idéias, descrições de ações, slogans, entre outras coisas, vão alternando-se no transcorrer da narrativa escrita.
O filme de Dhalia, no geral, desacelera o livro. Isso é curioso porque normalmente é o contrário o que ocorre, ou seja, são os filmes que dinamizam os romances. Esse processo de dinamização pode acorrer de diversas formas, por exemplo, através de elipses temporais ou da eliminação de acontecimentos secundários ou de personagens, amplificando, por outro lado, passagens que possam dar ensejo à criatividade do autor em exprimir-se através de blocos de imagens. A duração da narrativa, embora imprecisa em ambos, não sofre alterações, o que se altera é seu ritmo, mais intenso no livro. E mesmo quando o filme suprime, adiciona ou dá relevo a algum personagem não há indicação que se busque a dinamização da narrativa. Vejamos dois exemplos.
Primeiro, toda a passagem do livro em que o protagonista se apaixona pela mulher casada é suprimida no filme. Trata-se de um acontecimento importante no livro, que explora outras possibilidades da narrativa e do caráter do personagem e que se desenvolve no longuíssimo quinto capítulo do livro, o mais longo de todos. O protagonista se encanta pela mulher casada, que aparece como cliente, para vender-lhe um relógio. Ela aparentemente também se encanta por ele. Ela precisa de dinheiro, ele a ajuda, reconfortando-se com sua presença, embora fique em dúvida se está apaixonado ou se é efeito do novo remédio (tudo indica que é um antidepressivo) que está tomando. Apesar disso, o mundo dele ganha um novo encantamento, ele liberta-se por um tempo do cheiro do ralo e da presença obsedante do olho de seu pai. Vivem um jogo em que o sexo e o dinheiro que ele lhe dá para ajudá-la se complementam. No fim das contas, a desconfiança de que ela apenas está se aproveitando dele se sobrepõe a sua afeição e ele acaba por obrigá-la a cheirar o ralo, expulsando-a sem saber ao certo as intenções dela. Toda essa trama é retirada do filme, embora estivesse presente no roteiro. Aparece apenas uma cena descontextualizada em que uma mulher tira a roupa e faz sexo oral com o protagonista que lhe dá todo o dinheiro que tem nas gavetas. O que poderia ter levado a essa supressão não está ao nosso alcance saber ao certo. Porém, podemos afirmar que não há motivos para acreditar que essa passagem traria dificuldades para a dinâmica da narrativa, já marcada pela sucessão de um grande número de personagens que chegam à loja. Talvez uma simplificação da personalidade do protagonista, tornando-a mais linear, descomplicando-a. O filme poderia tornar-se mais interessante com a presença dessa trama.
O segundo exemplo é o destaque que o segurança ganha no filme, que no livro e no roteiro aparecia muito pouco. O segurança é interpretado, curiosamente, por Lourenço Mutarelli, autor do livro. Ele interage com o protagonista e com os clientes, mas o que sua presença indica sem sombra de dúvida é a construção de um caráter mais cômico ao filme, indicado já em seu figurino exagerado, seu jeito de paspalho, seu modo de falar ao mesmo tempo presunçoso e vulgar.
O filme possui um ritmo mais leve, pausado, que ameniza a personalidade atormentada do protagonista, que até ganha um nome, que não tinha no livro: Lourenço. Além disso, existe muito humor no filme, um humor ácido às vezes, mas bem dosado. A presença de Selton Mello como Lourenço, ator conhecido por muitos trabalhos humorísticos na TV, não compromete o tom geral do filme, salvo em algumas passagens em que seu estilo muito próprio de atuação transparece, falando mais alto do que o personagem que interpreta, como na cena em que se recusa a comprar dinheiro antigo de um cliente.
Esses elementos apontados acima (simplificação, humor, leveza, a presença de uma estrela da TV) talvez possam ser interpretados como uma preocupação em alavancar uma carreira comercial para o filme, o que não costuma acontecer com o atual cinema brasileiro financiado pelas leis de incentivo, cuja captação prévia de recursos desocupa a produção da necessidade da difusão do filme, até mesmo muitas vezes do desejo que esse filme seja visto pelo grande público, o que necessitaria de uma briga política para ampliar o espaço das produções nacionais no circuito de distribuição dominado pelos interesses da indústria do cinema estadunidense.
Contrabalançando isso tudo, o filme não faz concessões ao que é o cerne da história. A mercantilização das relações humanas fica evidenciada pelas diversas cenas em que os clientes afluem à loja para conseguir dinheiro com coisas usadas, muitas delas de valor inestimável outras sem valor algum, como o prato que a viciada lhe oferece. Essa situação dá poder a Lourenço sobre todas essas pessoas, ele determina valores de forma aleatória e deseja e acaba por fazer o mesmo com a bunda da moça da lanchonete. No fim das contas, só resta-lhe o vazio da ausência do desejo, o cansaço de uma vida desprovida de afeto. É isso o que o ralo representa na história. É ao ralo que Lorenço se dirige quando se sente vazio, recusa-se a consertá-lo de fato, inclina-se sobre ele para aspirar seu cheiro, rasteja moribundo em sua direção. Talvez a cena mais potente do filme seja uma que até pode passar despercebida, o travelling pela loja fechada, à noite, que descortina a luz vinda do ralo, diabólica. É no ralo que Lourenço busca seu reflexo, mas o ralo é o cu do mundo, o inferno, a escuridão, a ausência do pai. Quando ele olha para o ralo, vê apenas a escuridão, mas a escuridão responde ao seu olhar, ela o vê com o olho do inferno, isto é, com o olho do pai que ele nunca conheceu mas que tenta construir com um olho de vidro e uma perna de pau, como na história infantil. Lourenço se vê diante de sua incapacidade de tornar-se adulto, de amar, de respeitar aos outros e a si mesmo. De tanto acumular coisas, de tratar as pessoas como coisas, Lourenço reifica sua própria vida, alimenta seu espírito com seu próprio excremento, o cheiro do ralo.

Sobrevida


Análise fotográfica do filme L’intrus da diretora Claire Denis (França, 2004).


O protagonista de L’intrus é Louis Trebor, com quem encontramos em três momentos distintos de sua vida. No primeiro, ele vive numa floresta montanhosa na zona de fronteira entre a França e a Suiça, na companhia de dois cães, espreitado por pessoas que desconhecemos, mas que parecem estar atrás de um acerto de contas com ele. Louis corta a garganta de um de seus perseguidores. Ele começa a sentir seu coração fraquejar. Com dinheiro que guarda num banco suiço, compra um novo coração para receber de transplante. Atormenta-se vislumbrando que o coração pode ser retirado de um corpo assassinado. No segundo momento, logo após o transplante, ele se encontra no oriente, onde faz negócios com sul-coreanos e afirma que o fez pensando no filho. Louis nunca teve contato com esse filho, já adulto, fruto de um relacionamento com uma taitiana. No terceiro momento, alguns anos depois do transplante, ele vai ao Taiti, em busca do filho, que o ignora. Lá, numa ilha remota, espera que seu filho apareça, enquanto aguarda sua morte em decorrência de efeitos do transplante.
Esse enredo, cuja síntese apresentamos, flerta decididamente com a inverosimilhança. Além disso, apresenta como protagonista um personagem que somente com muita boa vontade pode despertar a simpatia do espectador. Ele é um criminoso, que se esconde de seu passado, que não demonstra afeto pelo filho, nora e netos que vivem próximos à fronteira, abandona os cães na floresta, não hesita em usar seu dinheiro para comprar um novo coração.
Apesar disso, o filme de Claire Denis tem uma potência impressionante. Na seqüência do texto, tentaremos apresentar e discutir alguns aspectos fotográficos do filme que fazem com que a força expressiva de suas imagens comunique muito mais que uma narrativa qualquer e dote esse enredo esquisito de uma interessante simbologia.
A câmera de Denis e Agnés Godard (diretora de fotografia) não se quer transparente, não está registrando os fatos de uma história que se conta a si mesma. Ao contrário, existe sempre uma intencionalidade. O posicionamento da câmera, seus movimentos leves, mas não mecânicos, indicam a presença de um olhar que se reposiciona no quadro, que se aproxima ou se afasta, que explora os espaços e, principalmente, as pessoas. O mais freqüente é que a câmera nos transmita sensações. As sensações mais comuns provêm de uma aproximação das superfícies, sejam elas a pele, o cabelo, as roupas, os pêlos dos animais, sejam as paisagens naturais, que formam espécies de blocos: o mar, os pinheiros, as folhas, as palmeiras. Quando a imagem mostra as dificuldades de Louis em realizar esforços físicos, a empatia não é provocada pela identificação com o personagem, mas pela universalidade de seu corpo, a humanidade que a câmera explora de perto ao dar relevo à sua respiração ofegante, ao seu tatear na terra, que chega ao espectador através de sensações.
Entre os planos não existe um encadeamento mágico, que cria a ilusão de uma narrativa inquebrantável, de fatos que se sucedem por conta própria diante de nossa crença em sua verdade. Ao contrário, existem lacunas que deixam ao espectador um papel ativo de participação na história, de preenchimento subjetivo dessas lacunas. Personagens aparecem na história para tão logo desaparecerem, deixando-nos a imaginar os contornos de sua vida, como a namorada suiça de Louis. Além disso, há interpolações de cenas que não fazem parte dos fatos, parecem sonhos, talvez devaneios, medos, a exploração do inconsciente que não é necessariamente subjetivo, tampouco de um personagem ou do protagonista. É o caso das cenas que se seguem à negociação de compra do novo coração (ou até mesmo essa cena poderia estar incluída). Caçadores largam um corpo ensangüentado na neve, depois aparece o coração, também sobre a neve, num contraste impressionante de cores, até os próprios cães de Louis aparecerem para devorá-lo. Ainda, a cena de Louis sendo arrastado pela neve com as pernas amarradas a dois cavalos a todo galope, simbolizando a culpa e o castigo advindos da infame negociação, a que mesmo um assassino pode não sair incólume, mas pode ser que essa culpa seja nossa e não dele, pode ser que seja nosso desejo de punição para o ato desumano que presenciamos de contrabandear um órgão e que o filme exprime em imagens ali, ante nossos olhos incrédulos. Existe uma carga dramática nessas cenas, notadamente a dos cavalos, que se expressa pela velocidade com que a câmera se desloca, às vezes treme, tentando acompanhar os cavalos, que entram e saem do quadro, como se seu galope fosse de uma potência inapreensível para a câmera; há muitos cortes, planos detalhes, closes dos cavalos, até o enquadramento final da cena, com os dois cavaleiros subindo uma colina coberta de neve até o horizonte cortado pela luz do sol poente.
Vemos, então, que o filme se compõe de aberturas que fornecem ao espectador um campo de criação imagética e até mesmo de ilusão sensorial. Recriamos aspectos da história que o filme não conta, mas, mais que isso, refletimos sobre os elementos simbólicos e somos apanhados numa estrutura narrativa que nos provoca sensações e paixões múltiplas.
Uma das possibilidades de discutir o filme simbolicamente é a reflexão sobre o anseio humano de uma sobrevida, de viver para além do tempo em que seu próprio corpo foi programado, quando, no caso, o coração simplesmente vai deixando de funcionar. De que meios podemos lançar mão para atingir esse intento? Viver com um novo coração traz quais considerações a respeito da subjetividade do transplantado, que precisa inibir seu sistema imunológico para que seu corpo aceite esse órgão novo, causando com isso uma série de efeitos indesejáveis, de novas doenças oportunistas. O filme infelizmente não explora em profundidade as reflexões do livro de Jean Luc Nancy, homônimo do filme, apenas o utiliza como argumento. No filme, a necessidade do transplante impulsiona um novo caminho a ser seguido por Louis, no Pacífico Sul, onde ele desenrola sua decadência, um caminho para a morte. A câmera já se distancia dele, ele não inspira mais emoções, seu corpo já se mistura à paisagem, já não se singulariza. Apenas seu velho amigo parace compadecer-se dele, mobiliza sua comunidade para encontrar-lhe um filho. A busca por seu filho bastardo talvez não passe de um anseio por reencontrar sua juventude, uma busca vaidosa por uma vida, por um vigor que lhe escapa.
Uma última palavra não poderia faltar sobre a música original, que vai pontuando o filme, fazendo com que as imagens que ela acompanha transbordem da tela. Assim vão os cães correndo atrás do carro, deslizando pela superfície do mundo.