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sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Presságio funesto

(Inspirado no conto "A cartomante", de Machado de Assis)

Era o Rio de Janeiro imperial, 1869. Dona Maria Anunciadora de Almeida estava triste e um tanto desgostosa com a vida nos últimos meses. Ela que se acostumara com a companhia do único filho desde a morte do marido, alguns anos atrás, agora passava seus fins de tarde e noites sozinha, desfiando o rosário de sua viuvês. Camilo contava então com vinte e seis anos, mas saía pouco de casa, não sendo afeito à boêmia, gostava mais dos passeios pela cidade nos finais de semana, de tomar um café com torta nas confeitarias do Centro e de vasculhar os livreiros em busca das últimas novidades da literatura romântica que chegavam da Europa. Nos fins de tarde, quando ele voltava de seus encargos de funcionário público, tomavam, mãe e filho, um café da tarde acompanhado de biscoitos ainda mornos que ela mesma preparava enquanto cantarolava em sua cozinha. Depois jogavam damas e, uma ou duas vezes por mês, Camilo a levava ao teatro.
Depois do retorno de Vilela, amigo de infância de seu filho, o forno de D. Maria Anunciadora já não se acendia com freqüência. Após o almoço, Camilo a avisava que não viria para o café, pois Vilela e a esposa o aguardavam para isto ou aquilo, passeios, jantares, teatro. Vilela casou-se em Campos dos Goytacazes, onde foi exercer a magistratura, que abandonara para ser advogado na capital. D. Maria reconheceu a graça e a vivacidade da esposa, de nome Rita, quando esta acompanhou o marido em uma visita à casa onde ele passara tantas tardes de sua infância brincando e comendo biscoitos. Desconfiou, no entanto, de alguns gestos pouco contidos da mulher, diria-se até vulgares, e da completa ausência de recato de suas risadas.
Quanto mais tempo sem a companhia de seu filho, mais D. Maria começou a estranhar que ele passasse tantas horas junto do casal de amigos. Pensava que devia estar interferindo na intimidade deles. No entanto, sentia também um pouco de felicidade pelo filho, que tinha tão poucos amigos, talvez fosse ela que devesse sair mais vezes de casa, não apenas para ir à missa, como era habitual, mas para visitar a irmã em Paquetá ou a tia em Cosme Velho.
Mas, naquele dia, especialmente, um sentimento ruim a afligia. Isso porque, um dia antes, uma de suas mucamas achara, no quintal da casa, um sapo com a boca costurada. Como era bastante supersticiosa, viu naquele batráquio emudecido um sinal de mau agouro, de que algo que era mantido em segredo traria uma desgraça a mais para aquela família. Que segredo poderia ser aquele, Camilo agora teria dado de esconder coisas da sua mãezinha? Só podia ser algo relacionado a Vilela, cujo retorno à cidade trouxe tantas preocupações novas para ela. Pensando bem, esse retorno fora um tanto suspeito, já que seu trabalho com a magistratura havia sido tão bem sucedido. Que segredos trazia aquele casal consigo? E Vilela que nunca fora muito vivaz, por que será que se fazia cada vez mais sisudo? Com sua cabeça a não lhe dar descanso desde o instante que acordara, remoendo suspeitas e antecipando desgraças imaginárias, D. Maria não viu outro recurso senão ir consultar a cartomante.
Seguiu o caminho da rua da Guarda Velha, onde ficava a casa da prestigiosa vidente. Fazia anos, desde as vésperas da morte de seu marido, que ela não procurara mais a mulher italiana, cujos olhos, de tão penetrantes, eram como se devassassem o próprio Destino. Da última vez, dali saiu sem esperanças na recuperação do marido, que morreu três dias depois sentindo dores terríveis devidas a uma úlcera. Estava muito agitada e nervosa naquela tarde, esperava que a cartomante lhe tranqüilizasse em relação ao presságio funesto que apareceu saltando em seu quintal, que asseverasse que seu único filho estivesse a salvo das maleficidades do mundo e que logo voltaria aos antigos hábitos dos biscoitos caseiros e dos jogos de dama.
A cartomante abriu-lhe a porta de sua depauperada casa na rua da Guarda Velha, que antes aumentava do que destruía o prestígio, e conduziu-lhe escada acima para o sótão atravancado de velharias em que lia a sorte. D. Maria Anunciadora foi sendo tomada de angústia. A italiana, sentada contra a luz da única janela, baralhou as cartas penetrando-lhe com os afamados olhos agudos.
"A senhora precisa ser forte para enfrentar bem as coisas que virão." Disse-lhe enquanto descia as primeiras cartas sobre a mesa coberta de um pobre pano de feltro vermelho. "Minha Nossa Senhora, quer dizer que vai mesmo acontecer alguma desgraça! As cartas dizem que alguém voltou de viagem… O Vilela, amigo de meu filho, que é que tem? Vejo-o num acesso de fúria, seu filho tem de afastar-se dele." D. Maria mal conseguia respirar. A cartomante prosseguiu: "Vejo duas mulheres na vida de seu filho, uma é a senhora, enquanto ele estiver do seu lado, nada de mau pode-lhe acontecer, a outra… será sua perdição. Santa Maria Mãe de Deus, o que devo fazer?" A cartomante calou-se por uns instantes, observando as cartas sobre a mesa, depois disse, sem esconder o desconforto diante dos infortúnios que as cartas previam para aquela mãe aflita: "Já disse, enquanto a senhora estiver por perto, nada de mal vai acontecer a seu filho, está tudo aqui, as cartas não mentem."
Aturdida, a cartomante encerrou a consulta, recolheu as cartas e pediu que D. Maria se retirasse, acompanhou-a até a porta, descendo as escadas. Não quis aceitar o dinheiro dela, os dois mil-réis que costumava cobrar. Fechou rapidamente a porta.
D. Maria Anunciadora caminhou sem rumo, enquanto a cidade vagarosamente escurecia. Perdida num turbilhão de sentimentos e idéias, ela tentava entender o que a cartomante lhe dissera. Vilela enfurecido, uma mulher fazendo perder-se em vicissitudes seu filho, seria Rita, só podia ser, logo desconfiara dela. Ah, quanto horror em seus pensamentos. Imaginava Vilela transtornado pelo ciúme, escorrendo o sangue de sua esposa, depois indo atrás de Camilo para terminar de lavar sua honra. Como poderia Camilo deixar-se seduzir por aquela mulher? Não, isso ainda não acontecera, se ela pudesse impedir a assídua freqüentação de Camilo à casa dos recém-chegados, ele estaria à salvo, mas como ela faria isso? Viu-se em frente da Igreja da Candelária, entrou, ajoelhou-se penitenciando-se por seus receios supersticiosos que a levaram à casa da italiana, mas justificando-os em nome de um bem maior que buscava para seu amado filho. Permaneceu ali por algum tempo, pedindo que Deus a iluminasse mais do que a cartomante fora capaz. Quando saiu da igreja, mais calma, porém perdida nos labirintos de sua alma angustiada, a noite já tomava conta de tudo. Seguiu em direção do Largo da Carioca, quando se aproximava, não viu, nem ouviu a charrete que se deslocava a trote largo, foi jogada longe pelo choque sofrido com o cavalo, desfalecida.
Sob os cuidados do médico da família, D. Maria Anunciadora de Almeida morreu nessa mesma noite, no leito em que também seu marido dera o último suspiro. Camilo segurava suas mãos e chorava copiosamente, sentindo os remorsos de ter estado tão afastado dela nos últimos tempos, desde o retorno de Vilela. Ao seu lado, Rita consolava o coração de Camilo, enxugando-lhe as lágrimas com seu lenço de seda, admirando-o pela franqueza de seus sentimentos pela mãe.
No quintal, as mucamas enfim encontraram o sapo com a boca costurada, presságio de toda a desgraça que se abatia sobre a casa. Mataram-o a pauladas.

20/8/2008
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