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sábado, 14 de novembro de 2009

Reencontro (ou como desfazer para si uma linha de fuga)

Fazia um daqueles calores absurdos em São Paulo, em que as sombras das árvores e das marquises são disputadas pela multidão de passantes, em que estar dentro de um carro pode se tornar uma atividade de alto risco porque podemos derreter ali, fundindo-nos aos bancos de tecido rústico. Era melhor não sair de casa. Mas era tarde demais, já me via ali na Paulista. Olhando em direção às filas de carros que aguardavam o verde, o reflexo da luz nos parabrisas dava a impressão de que eu via um lago, com sua promessa de alívio e cura do sufocamento em que meus sentidos fremiam. Delírio, delírio, mais valia estar num deserto de verdade.
Comprei o livro que havia encomendado e resolvi voltar logo para casa, mesmo sentindo-me no jardim das delícias por causa do ar condicionado da livraria. Talvez eu pudesse ir no cinema, para descansar um pouco dos barulhos do mundo, do marulhar dos motores a combustão. Mas aí eu teria de passar no banco antes, porque havia gastado o dinheiro com o livro. O banco ficava perto do ponto de ônibus, difícil saber qual dos dois eu escolheria, tirar dinheiro e ir ao cinema ou pegar o ônibus pra casa, quem sabe no caminho eu topasse com uma decisão.
Tristes trópicos era o livro que eu levava em mãos. Voltei pra livraria, pedi um café. O que será que é mais lucrativo para a livraria, vender livros ou cafés? Eletrônicos, sem dúvida, mas não era o caso dessa, que não os vendia. Comecei a ler o livro ali, torcendo para que meu cafezinho durasse muitas horas, porque com ele eu tinha exaurido meus últimos trocados. Um casal sentou ali do meu lado, viram o que eu lia:
– Que pena a morte do Lévi-Strauss, não.
– Pena? Como assim, ele já tinha cem anos, não ia durar pra sempre…
Hahá, ri por dentro, não foi muito simpático o que eu disse, mas não pude evitar. Um pouco constrangido por meu comentário, ele replicou:
– Ele vai sim durar para sempre, em sua obra, blablablá…
Clichês, como me irritavam clichês:
– Ah sim, claro, você tem razão. Com licença.
Tive de sair dali, de meu refúgio do calor da cidade, decidiir pra casa ler o livro, se a vizinha maluca não resolvesse ouvir seu rock-bíblia àquela hora da tarde. Mas o casal só quis ser simpático e eu saí de lá rispidamente. Por que será que sempre ajo assim quando as pessoas são simpáticas comigo? Deve ter algo a ver com minha mãe, a última vez que ela foi simpática comigo foi quando lhe contei que minha gatinha havia morrido trucidada pelos cães da vizinha. Ela disse:
– Pelo menos você tem alguma coisa a menos pra se preocupar.
Mas eu não tinha mais tempo a perder com minha mãe, tinha de voltar logo pra casa, ligar o ventilador e… Nesse exato momento, o mundo parou.
Sim, era ela. Só podia ser. Meu mais antigo amor, o primeiro, talvez o único, sim. Apenas com o delicado problema de que ela nunca soube disso. Dez anos depois, ela estava ali, passando pela calçada, empurrando um carrinho de bebê. Dez anos? Que nada, fazia bem mais tempo desde que ela desaparecera. Ela tinha casado com não-sei-quem-cheio-de-dinheiro. Comecei a segui-la, ela desceu a rua Augusta, com rapidez, fugindo do calor, provavelmente. Entrou numa galeria, protegida do sol, tirou o bebê do carrinho, abraçando-o e virando para trás, dando de cara comigo. Disse ela:
– Não acredito que é você, meu deus, há quanto tempo?
Minha surpresa foi tão grande que mal pude retribuir o abraço.
– Mil anos, não?
– Também não exagera, né?
– É seu filho?
– Não, não tenho filhos, é de uma amiga, que foi trabalhar…
– Você não tem filhos?
– Não, não tenho.
– Nossa, eu te imaginava gor..., quer dizer, com uma dezena de filhos…
Não, eu não disse isso, sim disse, caralho…
– Hahá, não, não. Meu ex-marido…
Nem ouvi o que veio depois, só ouvi ex-marido.
– Então, você não está casada?
– Não, e você?
– Também não. Você sumiu.
– Não sumi, não, moro a três quadras daqui…
– Então fui eu que sumi.
– É…
– Você está linda.
– Obrigada, você também não está de se jogar fora.
Puta merda, por essa eu não esperava. Lembrei do livro, do ventilador, dos cães, de minha mãe, do rock-bíblia… Não tinha mais nada pra dizer. Ela cantava baixinho pro bebê, que começava a acordar.
– Como é o nome dele?
– Giovane.
– Ah.
– Nossa, foi uma supresa mesmo te encontrar, blablablá.
Nem conseguia ouvir o que ela dizia, hipnotizado que estava com o simples fato de ela estar ali.
– Eu te amo.
Não, isso eu não disse, nem fazia o menor sentido. Seria engraçado se eu tivesse dito. Não, ao invés disso, eu disse que precisava ir.
– Ah, já? Não quer tomar um sorvete no shopping?
– Ah, quero sim.
Fomos ao sorvete no shopping, ela cada vez mais linda, insinuante, o desejo se propagava em mim com a força de um verão nos trópicos.
– Sabe, preciso ir mesmo, espero te reencontrar em breve.
– Ah, me liga, anota o telefone.
– Tá.
– Foi muito bom te encontrar, blablablá…
– A gente se vê.
É. Fui embora. Pensando que talvez voltasse a encontrá-la por ali. E que dissesse a ela o quanto ela era especial e o quanto eu a faria feliz se tivesse uma chance, apenas uma. Quando saí, o tempo havia virado assim, de repente, como só em São Paulo era possível. A chuva caía em grossas gotas. Corri para o ponto. Antes, passei pelo banco para tirar dinheiro. A senha: 1609, a data do aniversário dela. É, acho que eu a havia perdido para sempre, que eu precisava perdê-la. Ao menos, se ela não tivesse sido tão simpática comigo…