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terça-feira, 11 de março de 2014

Nietzsche e a educação (ou como um "não" pode ser um ato criador)



“Não vou mais fazer provas.”

Foi assim, peremptoriamente, que Luiz comunicou sua decisão à professora de Matemática, depois ao professor de Português, até não sobrar mais nenhum professor sem saber. A reação era diferente mas no fundo sempre a mesma: “Se não fizer, vai ficar sem nota.” Ele bem sabia disso, claro, tinha refletido bastante antes de fazer os comunicados.

“Mas a escola não pode me reprovar se eu souber toda a matéria.”
“E como os professores vão saber disso?”
“Simples, acreditando na minha palavra, a de que eu sei a matéria com sobras.”
De fato, Luiz sabia de toda a matéria, com sobras, e a maioria dos professores o conhecia do ano anterior. Como de nada adiantou insistirem com o aluno e com sua teima em não fazer as provas, os professores levaram o caso à coordenadora pedagógica, que prontamente chamou Luiz em sua improvisada sala.
“Não adianta, não vou mais fazer provas porque elas não servem para nada.” De início, a pedagoga tentou mostrar compreensão e simpatia, fez um levantamento das notas de Luiz e viu que eram muito boas, tirando dessa evidência uma sábia conclusão: “Servem sim, servem para você tirar as boas notas de sempre e não ter problemas para passar de ano.” Ele explicou para a Dona Nancy que para passar de ano ele precisava saber a matéria e que isso não seria problema, portanto, não teria motivo para não passar de ano. Ela teve de apelar para a autoridade de seu diploma, conseguido, aliás, com muito sacrifício no curso noturno da Faculdade Municipal de Ibutuandava, enquanto trabalhava de secretária numa gráfica das sete da manhã às seis da tarde.
“Luizinho…”
“Luiz, meu nome é Luiz, não Luizinho.”
“Sim, claro, Luiz, a escola precisa de regras, as mesmas regras para todos, se você puder passar sem provas, então todos vão se sentir no mesmo direito, daí ninguém vai aprender nada.”
“Por que ninguém vai aprender nada, que interesse os alunos teriam de ir pra escola e não aprender nada?”
 Luiz defendia sua posição usando uma lógica simples e irrefutável: quem vai à escola quer aprender, não vai deixar de estudar se não existirem mais as provas, logo, as provas eram pura perda de tempo, que podia ser usado para aprender mais ainda. Dona Nancy tentou de tudo, mas nada fez efeito: Vigotsky, Paulo Freire, Piaget e quase chegou a apelar para Pinochet.
Não demorou para que a escola exigisse a presença dos pais de Luiz. Seu pai era muito ocupado, engenheiro, sócio de uma construtora, disse:
“Sua mãe vai lá, mas filho, faça as provas, às vezes a gente tem de jogar as regras do jogo, sabe.”
“Não pai, não vou mais fazer provas.”
“Então sua mãe resolve isso.”
Sua mãe era muito ocupada, advogada, sócia de um escritório de advocacia, disse:
“Ai Luizinho…”
“Luiz, mãe, já falei.”
“Luizinho, faz as provas, você nunca teve problemas com isso.”
“Não mãe, não vou fazer provas, não servem pra nada.”
“Mas são as normas, filho, a gente tem de seguir as normas como todo mundo.”
“Mãe, se todo mundo seguisse as normas, ninguém ia precisar de advogados.”
No dia seguinte bem cedo, a mãe de Luiz encontrou-se com o diretor da escola, informando que seu cliente, quer dizer, seu filho, não podia ser obrigado a fazer provas, que era uma garantia constitucional, etc. O diretor, convicto de sua autoridade inabalável, não deu muita bola, informou que se seu filho não fizesse as provas seria reprovado. Ela, que tinha uma audiência em seguida, deixou a escola prometendo que tentaria de novo falar com Luizinho. 
Nada adiantava. Luiz estava inflexível na sua resolução. Toda a pressão que sofria, no entanto, não lhe tirou o prazer das horas de estudo em casa ou na biblioteca. Ao contrário, sentia-se cada vez mais dono de um arsenal de conhecimentos que impulsionavam sua alegria de ser o que era. Seus colegas passaram a prestar atenção nele, invejar sua infrequência nas provas e até seu gosto pelos estudos.
Um deles, por conveniência, juntou-se à sua luta, livrando-se assim das notas baixas e da necessidade de ficar horas na frente de livros que não lhe diziam nada. Chamava-se Marcelo, era alguns anos mais velho que Luiz, chegou até a passar algum tempo na biblioteca, fuçando as prateleiras, tomando coragem diante dos livros. Apareceu, algumas semanas depois, na prova de Matemática com o rosto inchado e um curativo na testa. Ouvia-se dizer que apanhara do pai, quando este soube da resolução de Marcelo em não mais fazer as provas. Acrescentava-se que não era a primeira vez que lhe dava um corretivo. Marcelo encarava a prova de Matemática com os olhos vazios, sentia sobre si os olhares de seus colegas, envergonhava-se de tudo, de não saber matemática, de estar com o rosto marcado, de si mesmo, por não conseguir fugir dos golpes, por não estar à altura do amor de seu pai.
Levantou-se. A professora disse que ele não podia sair da sala. Saiu da sala. Dona Nancy, a coordenadora pedagógica, disse que ele não podia ficar ali no corredor no horário de aula. Deixou o corredor. Foi em direção à biblioteca. Entrou. Luiz estava numa mesa mais no fundo, lia A genealogia da moral. Luiz observou Marcelo caminhando em sua direção, levantou-se quando ele já estava a um passo de sua mesa, bem a tempo de receber um soco de uma força colossal, no centro de seu rosto, caiu de costas no chão, entre duas prateleiras de livros. A dor se irradiava de seu nariz para todo seu corpo, sangue escorria-lhe sobre sua boca. Alguns segundos antes de desmaiar, Luiz notou que segurava o livro de Nietzsche bem agarrado à sua mão esquerda. As palavras do filósofo repetiam-se em seu espírito delirante: “Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’ – e este Não é seu ato criador…”