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terça-feira, 5 de janeiro de 2010

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I

Neste fim de semana, presenciei duas agressões covardes, em diferentes momentos, por estes sujeitinhos nefastos que estão brotando como ratos nas academias: uma, por puro despeito, em um flanelinha que eu mesmo acudi; depois, agrediram um amigo, sem qualquer motivo relevante, por uma estupidez, por uma insignificância, por uma bobagem de bêbado – e por trás, sem chance de defesa, sem sequer saber porque estava sendo vítima de violência, e, em seguida, mais exposto ainda, no chão, foi cruelmente chutado nas costelas. A civilização "exteriorizada", que é pura artificialidade, a juventude oca, é o padrão pasteurizado que estão nos oferecendo; é o peixe que se criou, que é pescado, e que é posto no aquário – e a tendência é a deterioração ainda pior da sociedade, porque estamos concebendo apenas a primeira aparição destes tipos criados na era do consumo total. O miserável é criado no ambiente da mais pura inveja e rancor, e quer ser este estúpido vencedor da nossa época; e o "afortunado" agora é rebento destas amebas que "resolvem" a felicidade através do dinheiro. É horroroso! É inominável! É odioso e nojento! É de causar vômitos!
Enfim, é o que eu vim pensando no ônibus e o que eu nem imaginava que voltaria quando li o seu texto. Por aqui, como você disse, continuo me comprazendo com a autopiedade, e sua recomendação é precisamente aquilo que descrevo aos meus amigos como o item faltante: força. Não sei o que será necessário para retomar aquele ímpeto – talvez uma grande catástrofe individual! Por onde você anda?!
Abraço,
D.

II

Profissionalmente, minha catástrofe individual foi SC. Larguei tudo e voltei a SP, estou fazendo um pós-doutorado sobre Deleuze. Mudei faz um mês e pouco, ainda estou me readaptando, retomando algumas boas coisas de que abri mão quando fui para Florianópolis viver junto às forças da natureza, buscando um novo ritmo, humanizante talvez. Mas aprendi que a natureza não humaniza, o que humaniza é o convívio social, por mais paradoxal que isso possa parecer.
Li seu texto [gab]. Meu, você escreve muito bem, tem um vocabulário fantástico, sem afetações e está construindo um estilo próprio. Falta a coragem para a ficção, parece: fazer esse eu ser mais que o escritor, ou menos talvez, fazer a gab, por exemplo, perder sua realidade, explodir sobre o mundo, refazer-se como outra coisa, em suma, você precisa abandonar esse princípio de realidade que aprisiona suas histórias. Talvez uma catástrofe individual seja ser capaz de destituir-se de um pretenso domínio sobre si, sobre as emoções, pensamentos, ações: tornar-se artista.
Afinal, o que acontece quando esse sujeito retorna a sua casa, espreitado pelo fantasma do ser amado?
Aceite minha franqueza como sinal de admiração.
Abraço,
S.

III

Eis algo sobre o qual eu me questiono constantemente: como escrever um romance desprovido deste tom autobiográfico? como ir além do princípio de realidade e forjar algo efetivamente estético? Acredito que esteja me faltando uma ideia norteadora – e isto não é tão fácil de obter quando estamos sozinhos, isto é, quando não se frequenta uma oficina literária, quando não se tem um mestre por perto, quando não se pode dialogar com ninguém ao nosso redor... Este texto da [gab] foi, antes de tudo, uma experiência descritiva. Eu queria conhecer o meu poder de adjetivação e de dar seguimento a uma narrativa (ainda que eminentemente curta) – reconheço que o próximo passo deveria ser aquele mergulho no "ser" que cava as entranhas assolado pelo espectro do amor. Estou preparando um trecho em que faço uma viagem mental (sem nenhuma relação com o [gab]): é impressionante como eu pareço estar possuído de uma descarga de imagens e visões... Enfim, como você sabe, eu sou altamente grato pelas críticas - sejam elas quais forem (mesmo tremendas bobagens), especialmente quando são criteriosas como habitualmente são as suas.
Sobre Floripa: eu sempre me perguntei como você conseguiria espaço naquelas universidades repletas de conluios, coronelismo barato, vaidosos limitados, etc. Há um domínio expressivo das formas tradicionais de ensino e de organização pedagógica (inclusive, na política acadêmica). Li o seu texto sobre "uma educação nietzschiana" e me recordei do nosso embrionário grupo de estudos: para mim, sobretudo, era a potencialização de uma "vocação". Ali, eu pude perceber que o meu destino estava selado, que havia algo no meu íntimo que ansiava por aquela espécie de conhecimento – e que, principalmente, eu me saía melhor e me comprometia mais com um tipo descentralizado de ensino. Havia compartilhamento, mas, pode estar certo, também havia uma tácita disputa, havia emulação e debate (nem que fosse para melhorar nossa capacidade de raciocínio e de lógica discursiva – e isto só é possível nesta relação de aparente simetria que existe nas formas descentralizadas: no modo tradicional, na verticalização antagônica entre professor e aluno, a formação da lógica mental ocorre no silêncio, sem compartilhamento e praticamente sem o teste constante do debate).
Espero que esta nova etapa lhe seja exitosa – não só no campo profissional como no seu convívio pessoal. De vez em quando vai bater a saudade de Floripa, mas, na primeira vez em que você voltar pra lá, em visita, perceberá a cidade lhe dar um tapa da cara e bater a porta atrás de você. Somos os excedentes dela.
Aviso-lhe quando postar o texto. Ele tem um estilo quase ofegante e opressor – como um desabafo (o que, no fundo, ele é). Agradeço pelos elogios: vindos de você são muito importantes.

Abraço,
D.

IV

Seu novo texto possui a velocidade do pensamento, percursos subterrâneos, às vezes saltos de rãs no escuro, umas por cima das outras, e digo isto assim, depois de uma primeira leitura. Sinto que, quando você atingir uma idéia aglutinadora, diretora de seu ímpeto narrativo, isto é, quando você souber aonde quer chegar, que história merece ser contada e que só você pode contar, sem excessos, sem perder-se na estilização, mas sem perder a velocidade, o subterrâneo e os saltos, quando você compuser tudo isso e, abrindo-se para essa externalidade que atravessa seu corpo, sem que seu corpo seja esfacelado por ela (ou que seja esfacelado mas retorne recompondo-se na diferença), aí teremos um grande feito literário, aquele a que você está destinado desde sempre.
Mas você se enganava sobre o retorno a Florianópolis, de que eu sofreria a indiferença fingida e violenta ao retornar a ela. Não, isso foi antes, no tempo que vivi lá. Agora quando retornei fui eu quem olhei de soslaio para aquela insipidez, estagnação, desestímulo e percebi de vez como sou muito maior do que tudo aquilo, como as grandes tarefas exigem paisagens habitadas. E nem a Copa do Mundo ela foi capaz de conquistar com seu olhar dissimulado.
Vamos em frente.
Abraço,
S.

V

A sensação que eu tive em Floripa era de ter sido engolido e regurgitado. Eu não posso também ocultar que, a toda vez que retorno, vejo-a com um olhar superior. Tudo o que lá é agitação cheira-me a feira. Tudo lá é mediocremente plagiado. Quando você respira um ar diverso daquele, não cabe mais naquele ninho de ratos.
Eu odeio Porto Alegre, e ainda guardo boas reminiscências de Floripa, em razão das minhas atividades. Está aí tudo resumido! – portanto, o problema se situa menos nas cidades do que em mim mesmo.
Concordo com a ausência de uma "ideia aglutinadora". Falta-me, antes de tudo, um objetivo claro. Estou convicto de que posso escrever, e de que sou um escritor; porém, sofro de uma anemia temática. Eu não consigo abrir as janelas.
Você ainda precisa me explicar isto: "abrindo-se para essa externalidade que atravessa seu corpo, sem que seu corpo seja esfacelado por ela (ou que seja esfacelado mas retorne recompondo-se na diferença"). (Deleuze passou por aqui). Vi aqui um detrito de dialética.
Abraço,
D.

VI

Acredito num corpo como expressão de potências, um corpo-sem órgãos, onde a distinção entre o dentro e o fora é ilusória. Um grito que ressoa na madrugada é interior ou exterior ao corpo que o produz? A voz sensual que suspira delícias ao ouvido do amante e o atravessa de desejo, é o fora ou o dentro do ser desejante? O corpo sofre a ação de potências que se entrecruzam com as dele e é a violência desses encontros que desperta o pensamento, sem elas o pensamento permaneceria latente em nós; pode ocorrer que essas forças sejam nocivas, desagregadoras, mas nem toda desagregação é definitiva, novas composições de forças podem ser mais afirmativas que as predecessoras. Nesse sentido, pode-se dizer que morremos muitas vezes em vida, para nos tornarmos à altura de nossa tarefa. Não há dialética nesse movimento porque o negativo não retorna nessas recomposições, ele é simplesmente eliminado, o que retorna é o excessivo, essa intensidade de potência que se libera do peso da identidade, depois de fremer nas profundezas. A diferença se define por essa potência intensiva. Que Deleuze reverbere pelas margens do Guaíba e que te ajude a arrombar janelas.
Abraço,
S.