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segunda-feira, 27 de abril de 2009

O imperador da ilha


“Aí depende do que você chama de amizade…”
Certo, a gente estava ali há apenas quarenta minutos e as coisas já começavam a ir mal. Será que algum de nós achava mesmo que éramos amigos? Fazia uns três anos que não nos encontrávamos. Mas precisava ser amigo para ir tomar um chope no bar?
“Cara, amizade pra mim é isso aqui, poder sair e lembrar das coisas que a gente fez, rir das mancadas.”
“Mas isso não dá o direito de fazer esse tipo de acusação, sem noção esse cara.”
“Não fiz acusação nenhuma, apenas disse uma coisa que aconteceu e todo mundo fez que esqueceu.”
“Acontece que só você lembra dessa merda, quem será que está errado?”
Ele tinha razão. Ninguém se lembrava. A não ser o Júlio. Nenhum dos outros dois, nem eu, estava na cara que o Júlio estava delirando. Mesmo já tendo passado quinze anos, ninguém esqueceria duma coisa daquelas.
“Olha, eu também tentei esquecer, é melhor esquecer do que conviver com isso, sorte a de vocês, então, se não lembram.”
“Quando você falou que foi?”
“Porra, foi a única vez que a gente foi pra Ilha Grande. Vocês precisam de ajuda pra lembrar, beleza, eu conto. A gente foi caminhar à noite, pegou aquela trilha que ia dar na prisão, estava uma lua linda, a gente bebeu, mas foi pouco, não tem a ver com isso, tem a ver com cabeça fraca. Tinha aquele maluco, que ficava na rua, doido mesmo, maltrapilho, falando pra pessoas que só ele via.”
“Não lembro nada disso, vocês lembram?”
“Eu lembro que a gente saiu à noite.”
Eu não lembrava de nada, continuei quieto.
“Daí você chamou o cara, quis tirar onda com ele.”
“Você’tá louco.”
“Não estou não, você que não quer lembrar, porque foi sua a idéia de ir lá, tirar onda com o cara. Daí a gente chamou ele pra subir no aqueduto, todos nós. Vocês dois na frente, nós dois atrás. O maluco dizia, meio gritando, ‘Eu sou o rei, o imperador desta ilha, nenhuma mulher manda por aqui, eu sou o rei, todos serão expulsos, menos a minha rainha’. Então ele caiu, não sei, não vi direito se tropeçou, se jogou, acho que não, despencou mesmo, caiu de cabeça.”
Então, a gente ficou olhando pro Júlio, sem saber se ele falava sério, se a gente caía na gargalhada ou o quê. Mas ele permaneceu mergulhado em si mesmo, absorvido pela própria história. Cheguei até a cogitar que ele estivesse certo, que a gente tivesse apagado da memória aquilo tudo, perguntei o que houve depois.
“Ele caiu de cabeça, quebrou o pescoço, morreu e a gente saiu correndo, deixou ele lá.”
“E no dia seguinte?”
“Fomos embora, pegamos o barco bem cedo, morrendo de medo que descobrissem.”
Ficamos quietos. Júlio de cabeça baixa, olhando para o copo que segurava com as duas mãos, sem dizer mais nenhuma palavra.
“Disso eu lembro, que a gente foi embora bem cedo.”
“Fica quieto, isso não tem nada a ver com essa história maluca, que viagem.”
Júlio levantou, caminhou até a porta do bar, ainda com o olhar perdido na trama dos pisos decorados. Deu uns passos em direção à esquina, sumiu de vista. Achei melhor a gente ficar ali, dar um tempo pra ele.
“O que foi que aconteceu?”
“Acho que eu sei, a mulher dele foi embora de casa, nem deu satisfação. Faz uns meses, acho que quase um ano.”
“E ele não contou pra ninguém?”
“Não, ele se fechou, eu soube porque tem um cara no trabalho que conhecia a mulher dele.”
“E você não fez nada, nem ligou pra gente…”
“É, não fiz nada, nem liguei, assim como nenhum de vocês me ligou quando minha irmã ficou um mês na UTI… Nem quando a filha dele nasceu. Nem quando você comprou o apartamento. E por aí vai.”
“É, bela amizade a nossa.”
“Que merda.”
“Espera um pouco, tem uma chamada, da casa do Júlio.”
Esperamos. Que idéia essa de reencontrar os amigos da adolescência. Quanta coisa já havia se passado, cada um cuidando apenas de sua própria vida. Eu me perguntava se alguma vez nossa amizade havia realmente feito falta para algum de nós, nesses anos todos.
“Vocês não vão acreditar, era a Miriam.”
“A mulher do Júlio!”
“Ela recebeu meu recado sobre nosso encontro aqui, ligou pra dizer que faz oito meses que o Júlio foi embora de casa, sem dar satisfação, e que se a gente soubesse alguma coisa dele era pra avisá-la…”
“Não é possível.”
“Vou lá fora, ver se encontro ele.”
Fomos todos. Vasculhamos todo o bairro, ninguém o havia visto, nem a pé, nem de carro. Sumiu como uma sombra em meio à espessa noite.

2 comentários:

  1. O que se passa com a gente, é difícil explicar...
    O que se passa com o outro, mais ainda...
    Mesmo que ele fale ou desapareça, virando sombra, ainda assim não saberemos.
    Podemos esquecer, e só. Deixar pra lá. Ou podemos procurar as respostas, mas somente se isso for significativo pra nós mesmos.
    É! Algumas coisas deixam de ser significativas. Outras, nunca foram, e nem ao menos é possível dar conta disso. Então quase sempre esquecemos, ficamos indiferentes e seguimos com a própria vida...
    Será que isso faz sentido?

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  2. Quanta inquietação!
    Isso não faz sentido!?!
    A vida não faz sentido?!?
    penso que aquilo que não faz sentido explica um pouco o que é a vida...

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