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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Achado na metrópole

Quem acompanha as publicações deste blog deve saber que nele eu publico apenas coisas minhas, textos literários, filosóficos, fotografias e vídeos, com exceção para uma troca de emails com meu amigo Daniel, com autorização dele, em que somos dois os autores. E deve saber também que quase todos os meses há uma postagem nova. Acontece que o mês de fevereiro já vem se encerrando e eu estou com pouquíssima inspiração, talvez porque esteja ainda no início de um monte de coisas novas, que só com o tempo virão trazer algum resultado em termos de criação.
Mas eis que, nesta semana, encontrei no metrô algo que me impressionou bastante. Ao lado do banco onde me sentei, havia uma sacola de uma papelaria, com muita coisa amassada e com o que restou de um bloco grande de papel meio amarelo. (Não amarelado de velho, amarelo mesmo, de colorido). Ao puxá-lo pra fora da sacola, vi que em uma de suas folhas, perto da última, havia uma anotação manuscrita. Não havia qualquer identificação, mas podia-se notar que a letra era masculina, menos arredondada e mais inclinada. A leitura dessas anotações me trouxe alguns sentimentos muito fortes, que não consigo explicar nesse momento. O fato é que resolvi transcrevê-las no blog. Deixo, aos leitores de Verticais, o julgamento a respeito de seu valor. Infelizmente sem esperança de que eu possa descobrir quem as escreveu.
    
“Sem sujeitos, o japonês que tem a brasília velha e que come a empregada feia, o rapaz que colocou um som potente no carro, o motoqueiro imprudente e apressado que para na avenida para tirar satisfação com o motorista imprudente e apressado, a velhinha ex-inspetora de alunos que vive sozinha e feliz, a doméstica que lava e que esfrega ouvindo o pastor no rádio execrando a vida longe de Jesus, a criança que cresceu mas não sabe se virar sem a mãe motorista, que para em fila dupla, o jornalista que fica treze horas em serviço na redação, o professor com carga horária de sessenta horas semanais, o motorista de caminhão que dirige como motorista de fórmula um, a jovem charmosa que troca olhares na fila do cinema, o homem que finge ser ex-militar porque se envergonha de ser ex-vendedor do mappin, a feirante que entrega sorrindo cada pastel que vende, o doutorando que protelou pela terceira vez a data final de entrega de sua tese, o doutor que protelou pela terceira vez a data final para desistir de prestar um concurso público, o médico que não gosta de gente, gente que odeia médicos, mas que não vive sem eles, a doméstica que foi buscar a mãe no interior da bahia, a mãe da doméstica que resolveu voltar para o interior da bahia, o deslumbrado que agora tem um carro novo, financiado, que pouco importa se anda ou está parado nos congestionamentos, a cantora que precisa aparecer na tv para saber se faz ou não sucesso, os fumantes que ocuparam os espaços públicos em frente aos bares depois da lei contra o fumo, a estudante de pedagogia que desfila diante da plateia da conferência que ela não consegue entender, a mulher linda e infeliz que cansou de ouvir as mesmas conversas dos homens, o pedestre que não consegue atravessar a rua até as nove da noite, se não chover, o casal que mandou os filhos para a casa dos parentes porque a casa em que moram ameaça desabar com a próxima chuva, a mulher que goza somente se recusar o gozo daqueles que a desejam, o motorista de ônibus que enlouqueceu, o travesti com o chapeuzinho do papai noel, o policial que atirou bala de borracha no estudante, o estudante que mal pode esperar pela próxima tragada, os amantes que almoçam toda terça-feira no motel, a mulher sentada no canteiro central da avenida, enrolada em um plástico de lona preta, cercada pelo lixo que catou na rua, conversando com tantos amigos imaginários, lançando-se no longo caminho alucinatório em que ela desta vez fosse esse homem que escreve num bloco amarelo observações inúteis a respeito dos seres que coabitam com ele uma cidade de extremos… De um lado uma linguagem que se afirma multiplicando-se naquilo que designa, de outro lado, múltiplos designáveis que não podem ser empenhados em qualquer linguagem. Um lado dentro do outro, a lucidez inócua, a esquizofrenia.”

Um comentário:

  1. isso é expurgo! isso é exorcismo!... e imagine que colássemos isso tudo como um mosaico: é um retrato de são paulo. e é uma súmula da nossa era. impressionante: no sábado, eu escrevi em um caderno - enquanto bebia uma cerveja num bar - algo similar estilo colagem do tipo "um bêbado todo sujo e esfarrapado com um litro de whisky sob a camisa de flanela empoeirada que parecia dois pulmões com um tamanho de caixa de sapado, bêbado dormindo, e o frio da noite, etc.; e um porteiro escondendo numa sacola o pequeno livro de hitler exortando os alemães às armas, etc." e isso também parece com aqueles recortes em jornal, como a fisionomia, ou o contorno de um homem, e que se transforma em uma corrente de homens multiplicados. eu gosto desses flashs voando meio que aleatórios.

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