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sexta-feira, 15 de maio de 2009

Gabriela

Onde você está? Estou no carro, no posto, em frente da loja. Ah, já estou indo aí." Quase uma hora esperando Gabriela chegar, várias latinhas de cerveja enquanto observava a chegada das pessoas, adolescentes na maioria, diversos casais de meninas de mãos dadas. Ela estava ali bem do lado do carro, vestindo alguns centímetros quadrados de pano, um vestido que generosamente se retinha acima de suas coxas e deixava descobertas suas costas. Um corpo esguio, que reforçava o apelo sensual de seu quadril. Um pouco sem fôlego, apaguei o carlton, saí do carro. Ela: "Faz tempo que está aí? Não, acabei de chegar. Ah, vem vou te apresentar meus amigos: Aninha, Mari, Sol, Júlia, a Júlia também é professora, e o Robson. Oi, oi, oi, e aí?"
Foi de manhã, depois da aula, que Gabriela me convidou pra ir dançar, com ela e com uns amigos. "Ah, mas meus amigos são gays, não tem problema, né? Claro que não, mas esse lugar é só pra gays? É, mas é superlegal, você vai adorar, e nem encana que está escrito em sua testa que você é hetero, ninguém vai te incomodar."
"Vocês esperam um pouco, vou estacionar o carro." As pessoas não paravam de chegar, faziam fila em frente da loja de conveniência do posto para comprar cigarro e bebida, depois iam para a fila da boate. Nossa, há quantos anos não ia num lugar assim, que estilo têm essas pessoas. Mas Gabriela se sentia em casa, que linda, que simpática, sorrindo para todos, brincando com seus amigos. Não via a hora de morder aqueles lábios, mas ela dissimulava bem, parecia que estava indiferente à minha presença. Bem, eu já conhecia sua história, sabia de seu fracassado casamento, que a fez protelar os estudos, sabia que não queria relacionamentos sérios, ao que eu não tinha nada a objetar. Sim, sua boca aguardava a minha, seu vestido aguardava um leve gesto para deslizar por sua cintura e ser lançado ao chão, expondo seus fartos seios, seus mamilos duros que se entreviam sob o leve tecido. Acho que ela não está de calcinha e se está deve ser ínfima, mas preferia que ela tivesse pelos pubianos, não entendo essa moda de raspar tudo, os pelos dão mais equilíbrio, dão mais graça à mulher.
"Vamos indo, vem, não precisa ir na fila, conheço o pessoal." Mas o que era essa mão dada com a mão do, como era mesmo o nome do amigo dela? "Gabriela, ele é seu namorado?" Era melhor perguntar agora, antes de entrar, gastar uma boa grana pra ficar sozinho lá dentro, ficar sem ela. "O Robson?" É, o Robson, um lindo rapaz de vinte e poucos anos, com um jeitinho tímido, ela só podia estar a fim dele, o que explicaria seu ar indiferente em relação a mim. "Robson, ele perguntou se você é meu namorado, ah, ha, o Robson é gay." Ai, que alívio, e que vergonha também, mas eu tinha de perguntar, agora o caminho está livre, ansiedade, ansiedade, não consigo tirar os olhos de seu rosto, suas pernas, seu longo cabelo liso, suas pernas, seu quadril. Ela conseguiu fazer todo mundo entrar, furando a fila, quase fiquei pra trás, mas o segurança deve ter percebido os traços do desespero tomando conta de meu rosto e me puxou pra dentro.
Mas ainda tinha uma fila lá na entrada, para pagar, nossa, que caro, professor acha tudo caro. "Eu estava contando pra Sol sobre Nietzsche, ela está desesperada comigo porque me tornei pagã! Pagã, que bacana. É, queria te agradecer por isso, suas aulas me ajudaram a me livrar de algumas culpas que eu sentia… e ressentimento também, casei muito cedo, era da Igreja Batista, ia a todos os cultos, você acredita?" Não, não acredito. "Batista é? É, Batista." Sol olhou pra mim estranho, acho que não foi com minha cara. Tinha muita gente ali na entrada, as meninas foram subindo, fiquei preso na aglomeração. Robson chegou perto, depois de um tempo, conseguimos chegar até os seguranças, que nos revistaram. Robson: "Aproveita que até a uma os drinques valem por dois. Quê?" Conforme íamos subindo a escada o som ficava muito alto. "Cada drinque vale por dois! Ah, valeu."
Do topo da escada se avistava toda a boate, cada vez mais cheia, pessoas dançando música eletrônica, muita luz ritmada pelas batidas do som. Caminhei por todo o lugar, com garrafinhas de cerveja que valiam por duas, a pista de dança estava cheia, foi bom ter percebido logo que ela é giratória, ou melhor, tem dois discos que giram um para cada lado, carregando consigo dezenas, talvez centenas de pessoas dançando. Meninos se beijando nos cantos mais escuros e nos cantos mais claros, alguns dançando sem camisa à vista dos outros. Já estava me excedendo na cerveja quando finalmente encontrei Gabriela. "Ei, fica aqui um pouco. Gostou do lugar? Legal, bem. Eu venho aqui direto, arruma um cigarro? Claro." Acendi o cigarro pra ela: "Que bom que você me convidou. Ah. Você está linda, sabia?" Ela se aborreceu um pouco com o elogio, deu um passo para o lado, um gole de cerveja, um trago no cigarro, entretendo-se consigo mesma, depois soltando seu corpo ao ritmo do som. Sol a puxou para um canto, meia-luz, tocou seu rosto, deu um beijo na boca de Gabriela, ali, na minha frente, suas mãos deslizaram pelas costas de Gabriela e a puxaram para junto de seu corpo. Ficaram se beijando ainda algum tempo.
"Preciso sumir daqui." Pensei, mas já estava muito alcoolizado para isso, fui ao banheiro masculino, cheio de gente de todos os sexos, conversando alegremente. Parei um pouco ali, em frente do enorme espelho, às vezes olhava o espelho e não me via, via meu pai. Como eu podia me livrar daquele rosto que me observava tão atentamente, que esperava de mim o que eu não podia ser? Levei ainda um tempo observando aquela cena refletida no espelho, sem saber se eu de fato fazia parte dela. Estava usando o mictório quando Gabriela chegou por trás de mim: "Ai, desculpa, eu queria ter dito antes que estava ficando com a Sol. Não tudo bem, só espera eu terminar aqui. Tudo bem, então você não se importa? Me importo sim, é que gosto de você. Gosta de mim? É, acho que estou apaixonado. Apaixonado, mas eu não sou hetero. Não, nem um pouco? Não, já disse, estou namorando com a Sol. Você não disse que estava namorando." Essa conversa não ia levar a nada, disse que ia pegar uma bebida e Gabriela foi junto. "Olha, agora estou me sentindo mal, te convidei pra vir aqui… Dá um beijo. Não, a Sol é superciumenta. Gabriela, por que você me convidou pra vir aqui?" Um tumulto perto do balcão arrastou-nos para sentidos opostos, um pouco à distância, pude ver seus olhos umidecerem, virou-se e perdeu-se na multidão.
"Vai se foder, cara, não vê que a Gabriela é minha, filho da puta, sai fora." Era Sol. Mostrou que estava insegura e percebi, então, que eu ainda tinha chances com Gabriela. "Ô Sol, nem adianta, vou roubar ela pra mim, tenho uma coisa pra ela que você não tem." Ela fechou os punhos. Preparei-me para esquivar. Por sorte, ela me lançou apenas um olhar de puro ódio e se foi.
Alguns minutos mais tarde, vi de longe as duas discutindo, Gabriela deu a volta, rodopiou com a pista, em meio à multidão, olhou pra cima, me viu, deu outra volta, foi em direção à escada, subiu na minha direção, me puxou pelas mãos. "Vem, vamos lá fora um pouco." Saboreei, naqueles instantes em que era conduzido assim por ela, a libertação de todas as minhas aflições, o mundo se recompôs diante de minha embriaguez. Sim, eu poderia amá-la para sempre, só precisava de uma chance. Lá fora, o ar fresco me fez bem, segurei Gabriela: "Onde você está me levando? Ali no posto, o Robson foi comprar cigarro." Paramos perto da loja do posto. Tentei puxá-la para perto, mas ela resistia. Beijei a rosa tatuada em seu ombro direito. "Não vou ficar com você nunca. Nunca? Nunca. Por quê? Olha, meu casamento foi uma merda, não, não foi uma merda, David é um amor, só que eu sou muito nova, quero fazer um monte de coisas… não quero que ninguém se apaixone por mim, a Sol nem me conhece, você nem me conhece… vou me formar, vou passar num concurso… olha o Robson, vem."
Soltei suas mãos, o que mais eu poderia fazer? Uma lucidez mais forte que a vida tomou conta de tudo, a tristeza. "Vou embora. Mas você não está bem pra dirigir. Estou sim, o ar fresco… Fica mais um pouco, vamos voltar pra dentro. Não, vou embora." Observei Gabriela caminhando, de volta para a boate, olhou pra trás, os mesmos olhos tristes, o mesmo desespero em sua boca. Senti uma ternura infinita por ela, queria mostrar a ela que nem todo relacionamento é igual, que ela não precisa afogar seus planos, anular a si mesma para viver um amor, que o amor podia até mesmo libertá-la dessas ridículas expectativas construídas em torno de sua vida. Daria o mundo todo pra ela. Por que caminhos inóspitos ela se perderia, eu me perderia, até aprender a descrer de si mesma? Ela descera ao labirinto e fora salva por Teseu, sem saber que era Teseu quem devia ser morto para que ela esposasse o Minotauro.
Lembro que cheguei no carro, sentei, dei a partida. (…) Robson bateu na janela, abri. (…) Gabriela segurava minha cabeça que se apoiava em seus ombros. O carro em movimento. (…) A rosa. (…) Um elevador abrindo a porta. (…) "Toma isso aqui, vai te fazer bem" (…) Vem, tira o tênis. (…) Desejo. Mãos macias em meu corpo. Prazer. Gozo.
Acordei sozinho numa cama de casal em um quarto em que nunca havia estado. A porta estava aberta e por ela entrava uma luz que indicava ser dia. Gabriela estava dormindo num colchão ao lado da cama, abraçada com Sol. Um leve lençol permitia ver os contornos de seus corpos nus, ombros e pernas à mostra. Eu também estava sem roupas, sem lençol, sem nada. Gabriela acordou, me olhou, ergueu-se em minha direção. "Que bom que terminou tudo bem." Deu-me um beijo na boca, seus seios roçaram em meus braços. O desejo redespertou-se em mim. Nesse instante, ouvi o som de um chuveiro, virei o rosto com uma expressão incômoda. Gabriela sorriu: "O Robson vai na padaria daqui a pouco, vai fazer um café pra gente".

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A cidade invisível


Nem todos os habitantes de F, principalmente os mais antigos, sabem que sua cidade é uma ilha. Isso acontece porque quem se afasta do centro, sempre é retido por amplas avenidas em que transitam milhares de automóveis sem parar um segundo, de cá pra lá e de lá pra cá. Ainda que fosse possível atravessar caminhando alguma dessas avenidas sem ser atropelado, não há muitas razões aparentes para isso, já que do outro lado, existem apenas gigantescas lojas que vendem carros, peças para carros e coisas afins. As lojas estão enfileiradas, coladas umas nas outras, todas de frente para a avenida e, segundo imaginam os que chegaram a F mais recentemente, de costas para o mar. Assim, quem quisesse se aventurar a chegar até o mar, teria basicamente três gigantescos obstáculos: atravessar em meio ao fluxo inexorável de veículos, encontrar uma passagem inexistente entre os prédios contíguos que se enfileiram por dezenas de quilômetros e a alternativa que resta, a mais acessível, que é por um dos cento e trinta canais que, costurando em meio aos bairros, acabam por desembocar no mar. Este é o mais feroz obstáculo, precisamente, por dois motivos. Primeiro, porque as casas e ruas vão espremendo os canais, de modo que, em pelo menos uma centena deles, apenas canoas de, no máximo, um metro de largura e dois de comprimento conseguem contornar as colunas e paredes fincadas em seus leitos; em alguns trechos, o próprio canal foi cimentado e as canoas não podem ir além. O segundo motivo é que, embora os outros canais sejam bem mais largos, ali se navega junto de todos os resíduos produzidos por todos os moradores de F. Suas águas são caudalosas e espumantes, seu cheiro fétido é sentido em todos os lugares da ilha, exceto nas lojas do lado de lá da avenida e, quem sabe, no interior dos automóveis.
Quem quer que chegue em F, seja pelo ar ou pelo mar, é surpreendido pela visão de imensas manchas escuras no desembocadouro dos canais, e pelo cheiro pouco aprazível que espelem. Mas, ainda assim, as pessoas não param de afluir a F, seduzidas pelas promessas de financiarem um apartamento com vistas para o mar. Consta também que ali se podem comprar carros pela metade do preço.