
Reflexões sobre Os incompreendidos de François Truffaut (França, 1959).
porque tú lo veas
es ojo porque te ve?”
Antonio Machado
No plano seguinte, o menino despista seu perseguidor. A câmera move-se apenas o suficiente para mostrá-lo escondido enquanto o funcionário passa.
Segue-se, então, o plano-seqüência da corrida de Antoine. A concepção é simples: num plano americano não muito rigoroso, movendo-se da esquerda para a direita do quadro, a câmera o acompanha em um travelling por mais de um minuto (78 segundos). Atrás dele, vemos uma paisagem rural de pequenos campos cercados, sem quaisquer pessoas à vista, vemos árvores e arbustos esparsos. O menino segue correndo, sem olhar para trás, sem saber o que o espera na frente, inteiramente sozinho vai cortando aquele caminho desolado. Seu rosto está praticamente impassível, não há traço algum de medo ou de coragem, de tristeza ou de alegria; o que sua marcha expõe é a determinação de seguir em frente, a despeito (ou apesar) de todas as instâncias disciplinadores que se atiram sobre sua vida.
O que mais pode nos contar essa seqüência da fuga de Antoine que nos remeta para além do filme de estréia de Truffaut? O que há de novo nessa seqüência de Os incompreendidos que aponta para novos caminho para a cinematografia francesa e mundial?
Dentro dos modestos objetivos deste ensaio, apenas pontuaremos algumas reflexões que nos permitirão situar o filme, de 1959, nos marcos de uma ruptura que uma nova geração de cineastas franceses provocaria com suas obras, ruptura que viria a ser conhecida como Nouvelle Vague.
A Nouvelle Vague visa ao distanciamento em relação ao cinema de estúdio do pós-guerra francês, no qual havia pouca margem para o improviso e acentuada preocupação técnica na construção de imagens pseudo-realistas. Em Os incompreendidos, filma-se nas ruas de Paris, num reformatório, com a presença de não-atores e atores amadores, sobretudo as crianças, dando ao filme um tom de documentário. O realismo não está mais nos marcos da representação realizada pela decupagem clássica a partir de enredos marcadamente literários, mas justamente naquilo que nega isso tudo, ou seja, em permitir o desenrolar da história diante da câmera, em cenas que se misturam ao cotidiano da cidade, que permitem ao espectador uma presença que não é mediada pela invisibilidade da câmera e da montagem, mas uma presença imediata que lhe permite acompanhar criticamente o desenrolar de um acontecimento, daí a prerrogativa dada aos planos-seqüência, notadamente no filme de estréia de Truffaut, de acordo com os exemplos descritos acima. Colocamo-nos ao lado de Antoine em sua corrida, não porque a câmera nos provoca a ilusão da presença na invisibilidade, mas porque ela nos provoca a apreender o sentido de sua marcha, a refletir sobre a estupidez das razões de seu internamento e daquilo que provoca sua fuga. Ainda, essa co-presença nos desafia a pensar como alargar os horizontes de possibilidades dessa vida que, ao contrário, as instituições pretendem cercear através do disciplinamento. Tudo está contra Antoine, tudo indica a ausência de saídas, mas a potência de sua marcha, a determinação de seu olhar sempre voltado para a frente nos dizem o contrário. Não estamos diante de uma identificação barata com um personagem cuidadosamente construído pela máquina de produzir ficções do cinema tradicional, mas de um ser que, ainda que possa ser igualmente ficcional, possui a universalidade em seu rosto humano. Mais que seu rosto, o que a câmera mostra é um corpo que age, que quebra com seu ritmo vigoroso todas as grades e cercas que se interpunham entre ele e o mundo.
É certo que esse recurso ao plano-seqüência não será uma tônica da Nouvelle Vague. Outros recursos serão mais comuns que esse, como a descontinuidade da narrativa, o uso freqüente de flashbacks, a explicitação da figura do narrador, entre outros. Justamente nisso reside o interesse dessa opção de Truffaut nessa obra emblemática. O efeito que se busca é praticamente o mesmo, provocar o espectador a reaprender o cinema, explicitar algo que nunca deveria ter deixado de ser óbvio, isto é, que a história não se conta a si própria, mas é fruto de um trabalho criativo de um autor e de sua equipe, munido de um dado aparato técnico, de uma linguagem própria constituída de blocos de imagem-movimento e imagem-tempo.
Talvez se possa afirmar que Os incompreendidos esteja sob a influência de André Bazin, que proibia a montagem quando o sentido da ação dependesse da contigüidade física dos seus elementos constituintes, isto é, da integridade de um acontecimento. Afinal, o que seria do plano da marcha de Antoine se a montagem alternasse recuos e avanços, diferentes ângulos, closes, etc.? Seria possível abarcar o sentido desse acontecimento ou seríamos apenas conduzidos pela câmera a uma emoção qualquer, que apenas aguarda uma consumação, deixando-nos a falsa saciedade do entretenimento?
Retomemos o filme. A fuga de Antoine o leva à costa. A câmera descortina o estuário, a escadaria por onde desce o menino, a areia da praia. Ele continua correndo. Olha para um lado, depois para o outro. A praia está vazia. A câmera o acompanha mais uma vez num longo travelling. Embora continue correndo, seu corpo demonstra uma relutância, uma apreensão diante do encontro que se aproxima. Nunca havia visto o mar. Sua marcha se detém quando seus pés pisam na água. Antoine caminha então em direção à câmera, procura por ela e seus olhos nos surpreendem a observá-lo. Colocamo-nos, assim, diretamente na história da vida desse menino, não apenas um indivíduo, mas uma singularidade porque carrega em si a universalidade de seu acontecimento, isto é, de sua resistência, de sua sinceridade, de sua busca, de sua fuga. Como sugerem os versos de Antonio Machado, em epígrafe, os olhos que vemos não são olhos porque os vemos, mas porque podem ver e, ainda mais, porque podem nos devolver o olhar. Logo, se também nosso olhar pode ser visto, surpreendido assim por Antoine, é porque realmente reaprendemos algo, tornamo-nos novamente capazes de ver.