“Estou saindo daqui agora, chego
em São Paulo só de noite.”
Falava isso ao celular com o
chefe, mas mentia porque já estava quase chegando a São Paulo. Eram quatro da
tarde. Calor demais, duas horas e meia dentro do carro, sua camisa estava
molhada de suor. Desconforto era uma palavra amena demais para esse tipo de
situação. E agora esse congestionamento, obras, mais uma pista sendo
construída, seriam quatro na rodovia que ligava Campinas à capital. Mais
carros, mais dinheiro para os pedágios.
O chefe não poderia saber de sua
mentira, eram sete anos na empresa, ele era de confiança. Mas teve de inventar,
para poder ir direto encontrá-la, senão teria de passar na firma, relatório,
e-mails, coisas pra resolver.
Fazia vinte anos que não via
Janaína. O carro mal andava, muita poeira e barulho levantados pelos caminhões,
tratores e escavadeiras. Isso até a semana anterior, quando se encontraram
depois de tanto tempo:
“Recife, eu não sabia, quando me
disseram que você tinha ido embora, disseram que foi para Vitória, ou Natal,
não lembro, faz tanto tempo, nós tínhamos quanto, quinze anos?”
Menos, treze ou quatorze.”
“Eu era apaixonado por você.”
“Eu também.”
“Era nada, você tinha um namorado
do colégio, devia me achar uma criança.”
“Até parece!”
Ela me fazia acreditar em tudo o
que dizia, com seu sorriso fácil, seu falar descomplicado.
Conversaram por horas, caminhando
pelo centro, passando por ruas que desconheciam e que os levariam a uma festa
de rua, festa da colônia libanesa, com sua comida deliciosa. Depois foram à
casa de uma amiga dela, um apartamento, onde ela iria passar a noite. A amiga,
na verdade, era de seu marido, mas a viagem para São Paulo foi sozinha. A
iniciativa do encontro tinha sido dela e isso era o mais perturbador para
Fernando. Pensava: “O que ela queria a essa altura? Infeliz no casamento?”
“Você é feliz no casamento?”
“Hum...” Ela segurava o adorável
filho de sua amiga no colo.
“Não tiveram filhos por quê?”
“Fernando, você e eu bem
poderíamos fazer um, o que você acha?” Foi assim desconversando que ela aos
poucos o enredou em seu mundo, fez com que ele se sentisse desafogado, bonito
talvez, vivo. Ele respondeu:
“Sim, vamos fazer um filho,
quando começamos?”
Ela soltou um riso livre e
inspirado, olhou bem nos seus olhos e disse “não hoje”. A amiga de seu marido
observava, é claro que não ia contar nada, mas mesmo assim a situação era
desconfortável.
Algum tempo depois, senti que
algo poderia se perder se eu não fosse embora. Era preciso marcar outro
encontro, só nós dois. Antes que ela voltasse para Recife, antes quem sabe de
ela resolver não mais voltar, ficar comigo para sempre, fazer um, dois, três
filhos.
Na despedida, beijaram-se. Pela
primeira vez, ela perdeu o controle sobre a situação. O beijo foi perto da
parada de ônibus, intensamente suave, impensável.
Agora eles iam se ver de novo, se
as obras permitissem que ele chegasse.
Fernando está vindo pra mim, é
como se sentisse já seu cheiro transportado pela brisa morna, nesta cidade onde
todos os cheiros se perdem, como em Recife todos os sons. Eu preciso olhar nos
seus olhos mais uma vez, preciso saber se o que senti foi real, se minha vida
deve passar pela metamorfose que toda paixão esboça, ou...
Caminhava pelo parque
Villa-Lobos, ponto de encontro inesperado nessa tarde tórrida de final de
verão. O suor escorria-lhe pela face e pelo pescoço, a respiração ofegava, a
sombra não era abrigo suficiente. O celular tocou:
“Estou aqui, no estacionamento.”
“Espera, já desço até você.”
A espera, ainda, de infinitos
instantes, coração batendo forte. Era essa a mulher com que passaria o resto de
sua vida, pensou.
“Oi, nossa você está suado.”
“Você também, divinamente.”
Eu ri, como ele era galanteador.
Talvez devêssemos mesmo fazer um filho.
“Onde vamos?”
“Eu tenho uma ideia.”
Enquanto ele dirigia rumo a sua
ideia, conversavam descontraidamente, como se o mundo lhes pertencesse. Como se
pertencessem um ao outro.
“Quando você está pensando em
voltar pra Recife?”
“Não estou pensando.”
“Em que você está pensando?”
“Que você vai me levar ao motel e
não sei se é uma boa ideia.”
“Mas é claro que é uma boa
ideia.”
Na chegada ao quarto do motel,
Janaína se sentia ausente. Até então, trair seu marido era apenas uma
experiência vivida no terreno do sonho, impulsionada pelo desejo. Agora, seu
desejo cobrava-lhe uma escolha. Ele foi logo tomar um banho, ela observou
cuidadosamente seu corpo nu, sem que ele percebesse, espiando por uma fresta
num jogo de espelhos improvável. O desejo a invadiu, levou-a para um lugar que
já não era seu, onde seu corpo já não lhe pertencia. Quando ele voltou,
enrolado na toalha, veio beijá-la, se achegando vagarosamente, calorosamente.
Não, não havia escolha, ela não poderia entregar-se ao desejo. Era preciso
resguardar o desejo para o olhar. Sim, um beijo, sentindo seu pinto roçar-lhe
entre as pernas. Outro beijo, arrancando-lhe a toalha, observando sua bunda no
espelho do teto. Ela se desvencilhou de seu abraço, de seu ímpeto, de seu
anseio. Levantou-se, falou qualquer coisa a respeito de excitar-se com os sons
que vinham do quarto ao lado, onde um casal fazia um sexo agitado. Disse que
não, que não poderiam fazer amor. Nem quando? Quando nunca.
Ela sentou ali no canto do
quarto, aparentando tranquilidade, controle. Ainda com sua roupa de caminhada,
o suor colado na pele, seu cabelo liso, comprido, enquadrando seu rosto
impecável, sua boca semiaberta. De canto de olho, viu quando ele se virou para
resgatar a toalha e cobrir-se, viu seu membro tão grande, tão duro que teve
receio que jamais se livraria daquela presença: o falo em sua pura forma,
desejo, desejo. Gozou silenciosamente, sozinha, sentada ali no chão, meio de
lado, resguardando-se da penetração, resguardando-se do outro, evitando que
esse outro que a habitava viesse à tona.
Olhou novamente para Fernando que
a observava. Perguntou-lhe se ele não gostaria de pedir algo para comer, talvez
um suco. O ar condicionado começava a fazer efeito. Já não havia suor
escorrendo naquele quarto.
Quando chegou o lanche com o
suco, ele resolveu perguntar o que houve. Sem sucesso. Ela se saía com
evasivas, apenas. Fernando perguntou:
“Você não vai tomar um banho?”
“Por quê?”
“Como assim por quê?”
“Talvez, depois.”
“Pensei que você gostasse de mim,
que a gente se gostasse.”
“Eu preciso ir embora, a Clê está
me esperando.”
“Vai me deixar assim? Não
entendo...”
Assomando-se de seu desespero,
ele disse baixinho, para si mesmo:
“Não é a primeira vez que isso me
acontece. Tenho medo.”
“Medo?”
“Sim, medo de que seja impossível
partilhar algo, de que só haja esperança na solidão.”
Não fui capaz de dizer mais nada
pra ele. Não havia palavras para o que vivi naquele quarto. Palavras de menos,
mas cada uma rasgava meu peito. Eu jamais largaria tudo para ficar com ele,
minha vida não era lá. Era preciso ir pra casa. Nojo, eu tive nojo daquilo que
ele me fez ver.
Ele levantou-se resignadamente
lúcido. Fez com que fossem embora. Deixou-a num ponto de táxi.
“Adeus Janaína, seja feliz.”
Assim seus olhos disseram. Dirigiu
para casa. Era melhor ligar, pensou, avisar que estava chegando, sua esposa
poderia estar preocupada.