– Onde você está?
– Estou no carro, no posto, em frente da loja.
– Ah, já estou indo aí.
Quase
uma hora esperando Gabriela chegar, várias latinhas de cerveja enquanto
observava a chegada das pessoas, adolescentes na maioria, diversos
casais de meninas de mãos dadas. Ela estava ali bem do lado do carro,
vestindo alguns centímetros quadrados de pano, um vestido que
generosamente se retinha acima de suas coxas e deixava descobertas suas
costas. Um corpo esguio, que reforçava o apelo sensual de seu quadril.
Um pouco sem fôlego, apaguei o carlton, saí do carro. Ela:
– Faz tempo que está aí?
– Não, acabei de chegar.
– Ah, vem vou te apresentar meus amigos: Aninha, Mari, Sol, Júlia, a Júlia também é professora, e o Robson.
– Oi, oi, oi, e aí?
Foi de manhã, depois da aula, que Gabriela me convidou pra ir dançar, com ela e com uns amigos.
– Ah, mas meus amigos são gays, não tem problema, né?
– Claro que não, mas esse lugar é só pra gays?
– É, mas é superlegal, você vai adorar, e nem encana que está escrito em sua testa que você é hetero, ninguém vai te incomodar.
– Vocês esperam um pouco, vou estacionar o carro.
As
pessoas não paravam de chegar, faziam fila em frente da loja de
conveniência do posto para comprar cigarro e bebida, depois iam para a
fila da boate. Nossa, há quantos anos não ia num lugar assim, que estilo
têm essas pessoas. Mas Gabriela se sentia em casa, que linda, que
simpática, sorrindo para todos, brincando com seus amigos. Não via a
hora de morder aqueles lábios, mas ela dissimulava bem, parecia que
estava indiferente à minha presença. Bem, eu já conhecia sua história,
sabia de seu fracassado casamento, que a fez protelar os estudos, sabia
que não queria relacionamentos sérios, ao que eu não tinha nada a
objetar. Sim, sua boca aguardava a minha, seu vestido aguardava um leve
gesto para deslizar por sua cintura e ser lançado ao chão, expondo seus
fartos seios, seus mamilos duros que se entreviam sob o leve tecido.
Acho que ela não está de calcinha e se está deve ser ínfima, mas
preferia que ela tivesse pelos pubianos, não entendo essa moda de raspar
tudo, os pelos dão mais equilíbrio, dão mais graça à mulher.
– Vamos indo, vem, não precisa ir na fila, conheço o pessoal.
Mas o que era essa mão dada com a mão do, como era mesmo o nome do amigo dela?
– Gabriela, ele é seu namorado?
Era melhor perguntar agora, antes de entrar, gastar uma boa grana pra ficar sozinho lá dentro, ficar sem ela.
– O Robson?
É,
o Robson, um lindo rapaz de vinte e poucos anos, com um jeitinho
tímido, ela só podia estar a fim dele, o que explicaria seu ar
indiferente em relação a mim.
– Robson, ele perguntou se você é meu namorado, ah, ha, o Robson é gay.
Ai,
que alívio, e que vergonha também, mas eu tinha de perguntar, agora o
caminho está livre, ansiedade, ansiedade, não consigo tirar os olhos de
seu rosto, suas pernas, seu longo cabelo liso, suas pernas, seu quadril.
Ela conseguiu fazer todo mundo entrar, furando a fila, quase fiquei pra
trás, mas o segurança deve ter percebido os traços do desespero tomando
conta de meu rosto e me puxou pra dentro.
Mas ainda tinha uma fila lá na entrada, para pagar, nossa, que caro, professor acha tudo caro.
– Eu estava contando pra Sol sobre Nietzsche, ela está desesperada comigo porque me tornei pagã!
– Pagã, que bacana.
–
É, queria te agradecer por isso, suas aulas me ajudaram a me livrar de
algumas culpas que eu sentia… e ressentimento também, casei muito cedo,
era da Igreja Batista, ia a todos os cultos, você acredita?
Não, não acredito.
– Batista é?
– É, Batista.
Sol
olhou pra mim estranho, acho que não foi com minha cara. Tinha muita
gente ali na entrada, as meninas foram subindo, fiquei preso na
aglomeração. Robson chegou perto, depois de um tempo, conseguimos chegar
até os seguranças, que nos revistaram. Robson:
– Aproveita que até a uma os drinques valem por dois.
– Quê?
Conforme íamos subindo a escada o som ficava muito alto.
– Cada drinque vale por dois!
– Ah, valeu.
Do
topo da escada se avistava toda a boate, cada vez mais cheia, pessoas
dançando música eletrônica, muita luz ritmada pelas batidas do som.
Caminhei por todo o lugar, com garrafinhas de cerveja que valiam por
duas, a pista de dança estava cheia, foi bom ter percebido logo que ela é
giratória, ou melhor, tem dois discos que giram um para cada lado,
carregando consigo dezenas, talvez centenas de pessoas dançando. Meninos
se beijando nos cantos mais escuros e nos cantos mais claros, alguns
dançando sem camisa à vista dos outros. Já estava me excedendo na
cerveja quando finalmente encontrei Gabriela.
– Ei, fica aqui um pouco.
– Gostou do lugar?
– Legal, bem.
– Eu venho aqui direto, arruma um cigarro?
– Claro.
Acendi o cigarro pra ela:
– Que bom que você me convidou.
– Ah.
– Você está linda, sabia?
Ela
se aborreceu um pouco com o elogio, deu um passo para o lado, um gole
de cerveja, um trago no cigarro, entretendo-se consigo mesma, depois
soltando seu corpo ao ritmo do som. Sol a puxou para um canto,
meia-luz, tocou seu rosto, deu um beijo na boca de Gabriela, ali, na
minha frente, suas mãos deslizaram pelas costas de Gabriela e a puxaram
para junto de seu corpo. Ficaram se beijando ainda algum tempo.
Preciso
sumir daqui. Pensei, mas já estava muito alcoolizado para isso, fui ao
banheiro masculino, cheio de gente de todos os sexos, conversando
alegremente. Parei um pouco ali, em frente do enorme espelho, às vezes
olhava o espelho e não me via, via meu pai. Como eu podia me livrar
daquele rosto que me observava tão atentamente, que esperava de mim o
que eu não podia ser? Levei ainda um tempo observando aquela cena
refletida no espelho, sem saber se eu de fato fazia parte dela. Estava
usando o mictório quando Gabriela chegou por trás de mim:
– Ai, desculpa, eu queria ter dito antes que estava ficando com a Sol.
– Não, tudo bem, só espera eu terminar aqui.
– Tudo bem, então você não se importa?
– Me importo sim, é que gosto de você.
– Gosta de mim?
– É, acho que estou apaixonado.
– Apaixonado, mas eu não sou hetero.
– Não, nem um pouco?
– Não, já disse, estou namorando com a Sol.
– Você não disse que estava namorando.
Essa conversa não ia levar a nada, disse que ia pegar uma bebida e Gabriela foi junto.
– Olha, agora estou me sentindo mal, te convidei pra vir aqui…
– Dá um beijo.
– Não, a Sol é superciumenta.
– Gabriela, por que você me convidou pra vir aqui?
Um
tumulto perto do balcão arrastou-nos para sentidos opostos, um pouco à
distância, pude ver seus olhos umidecerem, virou-se e perdeu-se na
multidão.
– Vai se foder, cara, não vê que a Gabriela é minha, filho da puta, sai fora.
Era Sol. Mostrou que estava insegura e percebi, então, que eu ainda tinha chances com Gabriela.
– Ô Sol, nem adianta, vou roubar ela pra mim, tenho uma coisa pra ela que você não tem.
Ela fechou os punhos. Preparei-me para esquivar. Por sorte, ela me lançou apenas um olhar de puro ódio e se foi.
Alguns
minutos mais tarde, vi de longe as duas discutindo, Gabriela deu a
volta, rodopiou com a pista, em meio à multidão, olhou pra cima, me viu,
deu outra volta, foi em direção à escada, subiu na minha direção, me
puxou pelas mãos.
– Vem, vamos lá fora um pouco.
Saboreei,
naqueles instantes em que era conduzido assim por ela, a libertação de
todas as minhas aflições, o mundo se recompôs diante de minha
embriaguez. Sim, eu poderia amá-la para sempre, só precisava de uma
chance. Lá fora, o ar fresco me fez bem, segurei Gabriela:
– Onde você está me levando?
– Ali no posto, o Robson foi comprar cigarro.
Paramos perto da loja do posto. Tentei puxá-la para perto, mas ela resistia. Beijei a rosa tatuada em seu ombro direito.
– Não vou ficar com você nunca.
– Nunca?
– Nunca.
– Por quê?
–
Olha, meu casamento foi uma merda, não, não foi uma merda, David é um
amor, só que eu sou muito nova, quero fazer um monte de coisas… não
quero que ninguém se apaixone por mim, a Sol nem me conhece, você nem me
conhece… vou me formar, vou passar num concurso… olha o Robson, vem.
Soltei suas mãos, o que mais eu poderia fazer? Uma lucidez mais forte que a vida tomou conta de tudo, a tristeza.
– Vou embora.
– Mas você não está bem pra dirigir.
– Estou sim, o ar fresco…
– Fica mais um pouco, vamos voltar pra dentro.
– Não, vou embora.
Observei
Gabriela caminhando, de volta para a boate, olhou pra trás, os mesmos
olhos tristes, o mesmo desespero em sua boca. Senti uma ternura infinita
por ela, queria mostrar a ela que nem todo relacionamento é igual, que
ela não precisa afogar seus planos, anular a si mesma para viver um
amor, que o amor podia até mesmo libertá-la dessas ridículas
expectativas construídas em torno de sua vida. Daria o mundo todo pra
ela. Por que caminhos inóspitos ela se perderia, eu me perderia, até
aprender a descrer de si mesma? Ela descera ao labirinto e fora salva
por Teseu, sem saber que era Teseu quem devia ser morto para que ela
esposasse o Minotauro.
Lembro que cheguei no carro, sentei, dei a
partida. (…) Robson bateu na janela, abri. (…) Gabriela segurava minha
cabeça que se apoiava em seus ombros. O carro em movimento. (…) A rosa.
(…) Um elevador abrindo a porta. (…) Toma isso aqui, vai te fazer bem
(…) Vem, tira o tênis. (…) Desejo. Mãos macias em meu corpo. Prazer.
Gozo.
Acordei sozinho numa cama de casal em um quarto em que nunca
havia estado. A porta estava aberta e por ela entrava uma luz que
indicava ser dia. Gabriela estava dormindo num colchão ao lado da cama,
abraçada com Sol. Um leve lençol permitia ver os contornos de seus
corpos nus, ombros e pernas à mostra. Eu também estava sem roupas, sem
lençol, sem nada. Gabriela acordou, me olhou, ergueu-se em minha
direção.
– Que bom que terminou tudo bem.
Deu-me um beijo na
boca, seus seios roçaram em meus braços. O desejo redespertou-se em
mim. Nesse instante, ouvi o som de um chuveiro, virei o rosto com uma
expressão incômoda. Gabriela sorriu:
– O Robson vai na padaria daqui a pouco, vai fazer um café pra gente.